Santa brasileira é feminista

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 20 de maio de 2019 às 11:25

- Atualizado há um ano

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Nunca ouvi falar de uma mulher que tenha entrado para a história fazendo o que se espera dela. Pode procurar que você encontra, na vida das heroínas, santas e demais "mulheres notáveis", algum nível de insubordinação à definição tradicional de feminilidade. Com isso, não quero chamar de desimportantes aquelas que - por gosto, circunstâncias ou covardia - cumprem o destino de coadjuvantes, rainhas do lar, mocinhas bem comportadas e coisas parecidas. Mas, observe: por mais que se negue, é das transgressoras que a humanidade gosta mais. Ainda que batam nelas, em vida. Ainda que a justiça seja feita retroativamente.

Também os deuses, pelo que percebi ao conhecer, por exemplo, as histórias dos orixás. Ou o deus único, onipotente, onisciente e onipresente da igreja católica. Porque este, vejam bem, escolheu Irmã Dulce para, entre tantas religiosas tradicionais, ser instrumento dos seus milagres. Seja por essa escolha mágica (uns acreditam, outros não) ou pelo prestígio que, de tão humana, a freira ganhou na instituição, concluo, mais uma vez, esse inegável fascínio por mulheres fora do padrão.

Explico. No caso de Santa Dulce, esse inevitável exemplo, me dá uma quenturinha no coração saber do quanto desafiou, foi "estranha", teve comportamentos não recomendados para moças da sua geração. Pois saiba, se ainda não teve as informações: a Santa jogava futebol, tocava sanfona, frequentava presídio masculino e ficou amiga de cangaceiro ateu do bando de Lampião. E não era "só apenas isso", como diziam naquele programa de humor. 

Dulce não tava nem aí para o que se esperava de uma mulher (e freira, veja bem!) nos anos 40 e 50. Foi criticada, claaaroooo, mas seguia trocando ideias com marinheiros, estivadores, malandros, vendedores da feira de São Joaquim e Capitães de Areia da cidade da Bahia. Os que a conheceram garantem, inclusive, que ela entrava e saia do convento exatamente quando queria. Era livre, acredite.

Atentou para as décadas? Outra vez: 40 e 50. Minha mãe nasceu em 50 e eu, filha dela, já cheguei aos 45 anos. Ou seja, faz tempo isso. E eu fico aqui tentando adivinhar o que diriam muitos dos seus atuais devotos, caso tivessem convivido com essa mulher de carne e osso. Quando jovem, digo. Quando ainda não havia a salvaguarda das suas obras sociais, no tempo em que ninguém ainda conhecia a sua bondade infinita. 

Que era amiga de puta e ladrão, certamente diriam, de forma pejorativa. "Feminazi", alguns pensariam, se usassem palavras atuais, ao vê-la circular no comércio da cidade, se colocando de igual para igual com os homens daquele tempo. E o que eu posso dizer é que a canonização de Dulce me causa euforia, nesse momento de profunda caretice coletiva. Se não pelos milagres (com religiosidade, sou reticente), por uma certeza absoluta e essa ninguém me tira: a primeira santa brasileira, além de baiana (delícia!) é, claramente, indubitavelmente, absolutamente e totalmente feminista.