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Da Redação
Publicado em 25 de novembro de 2018 às 05:00
- Atualizado há um ano
Não-importa-como-se-chama está sozinha. Sem filhos, o marido foi cortar lenha para cozinhar as beterrabas murchas que têm em casa. Alguém bate forte na porta. A casa de taipa e a mulher tremem. Não espera ninguém. Segue pé ante pé e, com a mão na tramela da janela, pergunta: - Quem bate? Voz de taquara rachada responde com bruteza: - Não é da tua conta, ordinária. Me chamou, eu vim.
A mulher não quer sair do lugar, mas parece não ter mais querer, é atraída feito imã, e abre a porta sem perceber que abriu. A visitante é gorda. Veste saia rodada e blusa vaporosa com estampas de cores fortes. Tem bastos bigodes e os cabelos estão cobertos por lenço escarlate. Carrega trouxa de panos fedorentos feito usasse chapéu da moda.
A visitante entra. Senta na única cadeira do lugar e, sem tirar a trouxa da cabeça, esbraveja, em português correto, como sói: - Sou a desgraça. Todo o dia a senhora me chama. Agora vai me ter ao lado até a senhora morrer porque dona desgraça nunca morre! Fica combinado assim: - Vossa mercê não vai ter descanso. Miserável já é. Mais miserável ficará. Deixe estar! [Espantada diante da criatura que chamava todo dia, a mulherzinha teve chilique, deu dois suspiros e depois morreu].
Histórias de dramaturgia similar circulavam pelos grotões dos sertões baiões. Houve pânico. A palavra passou a ser evitada. Quando pronunciada, em rompante indesejado, lavava-se a boca com a água e sabão e rezava-se três vezes o terço, de joelhos sobre cinza quente.
Então criou-se eufemismo para amenizar esse ‘desgracídio’ desmedido. Surgiu a palavra ‘desgrama’, pronunciada ‘disgrama’. Não adiantou. A desgraça percebeu o truque e continuou fazendo a desgraça das gentes que a chamavam agora, com mais intimidade, pelo apelido.
Em tempos recentes esta dramaturgia macabra rareou. A sabedoria popular percebeu: a desgraça não é mulher gorda de bastos bigodes e sim o conjunto da obra, a vida ao redor.
Sobras dessa crendice no poder negativo da palavra desgraça ainda restam nesta Bahia profunda. A ponto de urdirmos eufemismo insuspeito para se referir à dita-cuja. Quando o sujeito ou a sujeita quer explodir, cheia de ira, grita: - Vidraça!
[O truque deu certo. Nenhuma vidraça com bastos bigodes e trouxa de panos fedorentos na cabeça bateu à porta de alguém].
Idiotas da objetividade, os de direita e os de esquerda, e os há milhões aqui, ali e alhures, costumam fazer beicinho para essas miçangas radiosas da sabedoria popular. Eu não. A língua do povo pega, mata e come.
Prefiro crer a descrer. Em dúvida, melhor rezar – e eu rezo mantras de minha lavra ao caminhar e ao ir dormir. Creio na imortalidade da alma. Tenho meus santos e meus orixás de devoção enfileirados na minha janela e no meu coração. Cultuo a generosidade e a paz. Excomungo a inveja e o ódio. Acredito em Deus. Deus crê em mim – eu presumo.
Defino-me cristão-rogeriano. Religiosidade é feito escova de dentes, pessoal e intransferível.
Atesto e dou fé: - Não acredito em tudo, mas não duvido de nada.