Santeiro reverenciado em livros por Jorge Amado trabalha em ateliê no Dois de Julho

Personagem-chave em O Sumiço da Santa, artesão conta como era relação com o amigo escritor

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  • Thais Borges

Publicado em 29 de março de 2016 às 14:43

- Atualizado há um ano

Ô menina, se tu passar ‘na onze’ pela ladeira do Areal de Baixo, no Largo 2 de Julho, repare bem na casa de nº 11, de parede branca, muro verde e portão amarronzado. Não deixe passar batida a morada de um baiano que até Jorge Amado reverenciou. É ele mesmo quem atende a campainha: Zú Campos, nascido Jesuíno Campos de Oliveira e por muitos chamado de “mestre”. Se apareceu nessa vida em 1939, em Vitória da Conquista. Vinte anos depois, veio para Salvador trabalhar como pedreiro. Aqui, virou artesão, ganhou o mundo e as páginas de Jorge. O santeiro Zú Campos, 77 anos, em seu ateliê no Centro (Foto: Marina Silva/CORREIO)Para Jorge, Zú é guerreiro – e guerreiro no bom sentido, como faz questão de deixar claro no livro Bahia de Todos os Santos: Guia de Ruas e Mistérios, nas edições publicadas a partir de 1977. “Não sei de artista mais baiano, nem sei de cidadão mais representativo das qualidades do povo dessa terra de mar e montanha”, escreveu, na época. Personagem eternizado, o entalhador Zú também aparece em O Sumiço da Santa, de 1988. Foi quando deu a ideia ao frade Dom Maximiliano para botar a Santa Bárbara que entalhava no lugar da que sumiu, na Igreja Matriz de Santo Amaro da Purificação. 

Rapare, todas as reportagens deste especial de aniversário têm um tchan a mais no ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO DE SALVADORApesar de parecer bem verdadeiro, o tal diálogo nunca aconteceu. Tudo veio da cabeça de Jorge. “Ele era uma pessoa que os amigos é que eram personagens. Inventava as coisas. Depois foi que ele me disse 'olha, você tá no livro'. Para mim, só em ser citado por Jorge, em vida, já é a glória. E eu, além de ser citado, tinha ele frequentando minha casa”, lembra. Do futebol ao entalheFilho de mestre de obras, Zú fez de um tudo por aqui: além de pedreiro, foi carpinteiro, pintor de paredes... Já em Salvador, em 1959, para começar a trabalhar no Museu de Arte Sacra, no Centro, foi daqui pra ali. Primeiro, como pedreiro, depois como guia e até fazendo restauro. Nesse meio tempo, chegou até a dar uma pinta como jogador de futebol do Galícia, entre 1959 e 1964, mas acabou não indo em frente. Foi entre 1965 e 1966 que teve contato com a arte do entalhe pela primeira vez. Na época, já se aventurava pintando azulejos no museu. Certa feita, apareceram uns entalhadores de Olinda por lá, precisando de um local para trabalhar. “Eles tinham vindo do Rio e tinham vendido tudo, mas tinha uma exposição em Salvador e não tinha mais material. Achei aquilo que eles estavam fazendo tão bonito. E eu decidi que ia começar a entalhar também”. De formação católica – até porque trabalhava no Museu de Arte Sacra – começou com os santos católicos. Depois, passou para os orixás. Para não fazer besteira com a religião dos outros, decidiu frequentar terreiros para conhecer mais. “Acabei fazendo a cabeça. Sou de Oxalufã”, conta Zú, que é filho de santo do terreiro Ilê Axé Iaô Minidê, na Federação. Virou professor e começou a dar cursos em outras cidades – sempre convidado por prefeituras, fundações... Só tinha barão entre os alunos. De médico e engenheiro pra cima. Foi numa dessas, fora daqui, que conheceu Jorge Amado. Amizade de baianosMestre Zú e o escritor se encontraram em São Paulo. Na época, Zú já era conhecido. Rodava esse Brasil de cabo a rabo fazendo exposição, mas tinha uma certa exclusividade numa galeria paulistana.  Jorge foi e encomendou um São Jorge. Zú começou a fazer, como se tivesse comendo com farinha.Mas aí, a cada santo que o entalhador começava, a galeria vendia. Por telefone mesmo. “Eles falavam: 'Zu tá fazendo um trabalho assim, com tal dimensão', e a pessoa comprava. E eles acabavam vendendo todos os trabalhos que eu tava fazendo para Jorge Amado”. No quarto São Jorge vendido, Zú se retou. Disse que só ia fazer a encomenda quando viesse a Salvador. Meses depois, foi isso que ele fez. Depois, ficaram amigos.  “Ele ia lá em Roque fazer as molduras dos quadros e passava em minha casa. Dizia 'vim ver minha comadre e meu bacurinho. Não vim ver você, não, que você não me procura”, conta Zú. A comadre e o bacurinho eram a mulher e o filho do artesão. Já Roque era o moldureiro Roque dos Santos, que também ganhou um verbete em Bahia de Todos os Santos. Quando voltou a Salvador, estudou Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia (Ufba) e passou a trabalhar como professor no Museu de Arte Moderna (MAM). Lá ficou por 27 anos, até se aposentar, em 2009. Hoje, vive da aposentadoria, mas a arte ajuda a dar sustança. “Se recebesse encomenda, seria ótimo, mas como eu não tenho o que fazer, vou fazendo. Mas eu gosto porque pelo menos eu tenho liberdade para fazer o que quero quando quero. E vou vivendo”, conta. A oficinaOutros chamariam o local de trabalho de Zú de ateliê – Jorge, inclusive, fala assim nos livros. Ele próprio, não. Para Zú, seu trabalho é de operário. Operário da arte, mas ainda operário. Nas paredes da oficina, uma renca de santos, de orixás, de máscaras, desenhos e até uma pomba. Toda emperiquitada, uma Iemanjá de mais de dois metros, é uma das que chama mais atenção. É lá que esquece da vida. Se deixar, passa 12 horas de relógio trabalhando, sem parar. Mas não fica só nas esculturas dos santos e orixás. Primeiro, porque já fez até buda. Mas faz também restauro de esculturas deterioradas, bustos em argila, cenários para peças teatrais e filmes... “Minha mulher fica retada porque digo que sou consertador, não restaurador. Mas não tenho diploma em restauro, isso é só um nome bonito. Acho frescura”. E, por muito tempo, foi responsável pela decoração do Carnaval de Salvador – ele, inclusive, é membro do Conselho Municipal do Carnaval (Comcar). Já expôs em quase todo o Brasil e, hoje, tem cerca de 20 peças em exposição permanente no Museu de Antropologia de Frankfurt, na Alemanha. “Eu não sou pouca merda, não”, diz, aos risos. Aonde que a gente duvida? Pois, bem. Esse Zú não é graça, não, viu? O mestre criou até um padroeiro próprio. É o tal do São Cachacin – uma miniescultura, bem fininha, que coloca dentro de cachaça da boa. Aí, quando o cidadão for comer água, vai dar de cara com um sabor ainda mais pitoresco. Zú só não pode ele mesmo tomar uma: os remédios não deixam. ValoresO mestre garante que não dá um tiro nos preços, mas também não tem espaço pra canguinhagem. Um santo de uns 40 cm, por exemplo, poderia sair por uns R$ 300 ou R$ 500, a depender do material – mais barato se for fibra de vidro. Se for de madeira, o negócio sai um pouco mais salgadinho. Um painel, desses bonitões e todos numa madeira boa, não sai por menos de R$ 5 mil por metro quadrado. Ele só lamenta não ter exposto muito em Salvador. Aqui, diz ter sido chamado só umas duas ou três vezes ao longo da vida. “Baiano parece que não dá muito valor a artista da terra não”. Mas isso não diminui o amor que tem por Salvador. Zú diz que a cidade é sua inspiração, o que lhe dá motivação para trabalhar. “Você faz esse trabalho, mas a cidade oferece muito, porque tem o lado rústico, pitoresco, depois você extravasa. Eu sou  um artesão, eu construo imagens e sou aquela pessoa que muda o mundo pela arte. Quando não estou aqui, sinto uma falta dessa cidade... Você nem imagina. Ela é muito mágica. Tem coisa que não tem em lugar nenhum do mundo”. A mulher, dona Luísa – uma senhorinha muito dada – é quem tem que chamar Zú do andar de cima todo dia. Tem que lembrar o homem que ele precisa comer, merendar de vez em quando. Ela mesma não fica lá embaixo o tempo todo porque não aguenta a quentura. Talvez também não aguente o toc-toc do martelo do marido. Mas, com ela, não tem chiada e Zú garante que não abusa os vizinhos. Pra diminuir a zuada das ferramentas, comprou um martelo diferenciado, de borracha. Depois das 18h, também só trabalha com pintura e essas coisas que não fazem barulho. Se um dia você tiver à toa, pega um buzu e vai uma hora dessa lá bater um papo com o mestre. Ele, que começa a pegar no batente lá pelas 8h, é doido por uma boa conversa e garante que não empata o trabalho, não. Glossário12 horas de relógio – 12 horas de duraçãoAbusar – PerturbarAonde? - Duvidar, ser contrárioBacuri – criança recém-nascida, filhoBarão – gente ricaBotar – colocarBuzu – ônibusCanguinhagem – Ser pão-duroCerta feita – uma vezChiada – reclamaçãoComer água – BeberComer com farinha – Fazer algo com facilidadeDada – Pessoa simpática, agradável, prestativaDaqui pra ali – logo, de imediatoDar a ideia – sugerirDar sustança – dar forçasDar um tiro – pedir um preço muito alto por alguma coisaDe cabo a rabo – do começo ao fimÉ graça?! - É mole? Para pessoas, quando alguém arma alguma coisaEmpatar – Perturbar, atrapalharEmperiquitada – elegante, toda arrumadaEsquece da vida – Se distrai, não lembra de mais nadaMerenda – lancheNão é pouca merda – Não é qualquer umPassar batido – passar ligeiro, sem perceberQuentura – CalorRenca – Um monteRepare – Olha só, veja aquiRetada – ChateadaTomar uma – beberUma hora dessa – qualquer horaZuada – Barulho