Se eu me apaixonasse, casaria com um negro, sim

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 25 de novembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Início dos anos 90. Sala de aula. Colégio de classe média/alta, em Salvador. Professora de redação provocando a turma sobre racismo. De repente, ela pergunta para a turma de maioria branca "Quem aqui namora ou namoraria um negro ou uma negra? Quem aqui casaria com um negro ou uma negra?" Eu, mestiça, adolescente, arrogante como a maioria dos jovens e me achando a princesa libertária do Recôncavo, mando a minha resposta, em alto e bom tom: "Se eu me apaixonasse, casaria com um negro, sim".

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(Nossa! Que generosa! Eu deveria ser aplaudida, né?)

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Enquanto eu falava, já entendia o tamanho da merda. Eu havia dito, com todas as letras, que precisava de uma boa justificativa para me envolver com uma pessoa negra. Que, se o garoto fosse branco, podia namorar até sem paixão. Eu disse, de alguma maneira, um "não sou racista, mas...". Eu estava sendo profundamente racista, eu sempre havia sido e descobri isso ali.

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Nem me lembro do conteúdo da porrada que levei da professora enquanto a turma concordava, veementemente, com o meu "se". A ficha já havia caído e, enquanto ela falava, eu repetia baixinho "eu entendi, eu entendi" tentando fazer com que ela parasse de explicar e minimizasse o meu vexame. Eu queria apenas mudar de assunto, sair do ambiente como quem solta um peido e foge pra longe. Eu via colegas defendendo o meu "se", impermeáveis, e aquilo duplicava o meu desconforto. Eu não conseguia falar direito, afundei na cadeira sentindo aquele arrepio estranho que envolve o corpo, enrubece o rosto e se chama "vergonha de mim".

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Eu tinha 15 anos e a questão "racismo" sempre havia sido tratada de maneira estranha em minha família miscigenada baiana. Claro que eu escutava "somos todos iguais", mas isso não convence quando apenas os garotos brancos são encarados como possíveis namoradinhos, quando cabelos mais lisos e traços "mais finos" são as características elogiadas nos negros, quando sugerem que você "solte os cachos" dos seus cabelos, quando as pessoas negras da sua família são chamadas de "morenas", quando lhe dizem que dreadlocks fedem e outras coisinhas mais. Eu cresci, na Bahia - entre o Recôncavo e Salvador - imersa, sim, em um ambiente (mal) disfarçadamente racista e ninguém sai ileso disso.

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Aquela foi uma aula inesquecível pela percepção de que o primeiro round da luta contra o racismo teria que ser dentro de mim. E que, talvez, esse round durasse mais do que eu gostaria. Entendi que não seria simples identificar tudo o que havia sido plantado em minhas esquinas e que, por mais imbecil que eu me sentisse todas as vezes em que o meu próprio racismo se manifestasse, ele ainda estaria ali. Cada vez menos, a cada dia mais esquálido, mas demandando a minha vigilância, talvez até o fim.

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Há 130 anos, pessoas negras tinham status de objeto, no Brasil. Eram como  cadeiras, mesas, penicos. Escravizadas, essas pessoas podiam ser tratadas como animais, se tivessem a "sorte" de "bons" senhores. Bichinhos de estimação. Essa coisa difícil de dizer é a verdade e foi ontem, percebe? Em que universo vive quem acha 130 anos tempo suficiente para que estejamos todos curados e vivendo em harmonia? Ainda estamos doentes, sim, e entre as maiores escrotidões está a negação disso justamente porque não há nada a fazer contra um mal que "não existe".

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Se você não é identificado(a) como negro(a) e, portanto, não sofre na pele a infinidade de questões que machucam e agridem, profundamente, TODOS(AS) os negros e negras do Brasil, mesmo assim se lascou do outro lado. A não ser que seja um babaca alienado (nesse caso, rest in peace, longe de mim) você tem coisa pra pensar, rever, reposicionar sobre isso aí. Pode ser um olhar pro turbante, um achar certas coisas "puro mimimi", não entender as cotas e outras coisas assim. Talvez ajude passear por sua infância, pelas ladainhas de família, pelas piadinhas da tia branca, pelo "baixou a neguinha hoje" que a sua sogra, lá da cozinha, ainda diz. Junta tudo isso e passa a régua se perguntando, honestamente, "o que dessa merda toda grudou em mim"? Aí é reconfigurar, no gerúndio, entre amigos ou entender, finalmente: "preciso de terapia". Porque essa é a parte do trabalho que cabe apenas a você.

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(Consciência tem que ser de todos e é todo dia)