Sem essa de ‘mimimi’

Gamil Föppel é advogado e professor de Direito Penal

  • D
  • Da Redação

Publicado em 24 de abril de 2018 às 02:29

- Atualizado há um ano

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Nos últimos anos, com anormal periodicidade, noticiaram-se significativas alterações no Código de Trânsito Brasileiro, sempre relativas ao endurecimento das sanções para os crimes de homicídio e lesão corporal culposos na direção de veículo automotor, com especial ênfase à punição do agente que está sob a influência de álcool.

A mais recente, que passará a valer a partir do dia 18 de abril de 2018, estabelece a duríssima pena de cinco a oito anos, para quem comete homicídio culposo na direção de veículo automotor, e de dois a cinco anos, no caso de lesão corporal culposa, em ambos os casos, quando há demonstração da embriaguez do condutor do veículo.

Assim, as penas aproximam-se muito daquelas previstas para a modalidade dolosa (quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo) desses mesmos crimes, em que pese o juízo de reprovação da conduta dolosa ser evidentemente muito mais intenso.

O aumento da pena ainda possuiu outras significativas repercussões, sendo a mais ilustrativa e diretamente perceptível a impossibilidade de a autoridade policial conceder fiança.

Com efeito, a justificativa para a alteração legislativa, como sempre ocorre quanto a qualquer agravamento da sanção penal, é de aplacar uma suposta sensação de impunidade em relação aos delitos cometidos no trânsito, servindo como reforço à prevenção dessas ocorrências, como forma de demover o agente da prática dessas condutas.

Efetivamente, não se desconhece o problema quase epidêmico de acidentes de trânsito causados por embriaguez ao volante, devendo tal conduta ser sempre combatida. Contudo, as justificativas apresentadas, evidentemente, não se sustentam.

A importância do bem jurídico tutelado não permite subverter as regras do Direito Penal, sob pena de reduzir-se o poder punitivo do Estado a mero exercício de arbítrio.

Jamais se conseguiu demonstrar a repercussão direta do agravamento da sanção penal com a diminuição na quantidade de crimes. Isso é ainda mais evidente em relação ao crime culposo. Afinal, nessa hipótese, o agente acredita categoricamente que não produzirá o resultado lesivo (no caso, morte ou lesão corporal), de modo que o aumento da pena não lhe demoverá de adotar um comportamento negligente.

Inclusive, sob uma perspectiva de prevenção de acidentes de trânsito, já se demonstrou que medidas administrativas de intensificação da fiscalização possuem resultados muito mais produtivos do que o mero e isolado aumento de pena. Desse modo, a nova lei não deixa de possuir um caráter meramente simbólico.

De outro lado, pelas mais variadas razões, o agravamento da pena não inibirá a suposta sensação de impunidade, mesmo porque revela-se praticamente inviável ao Direito atender sentimentos de caráter tão subjetivo e etéreo.

Em relação à vedação de concessão de fiança pela autoridade policial, essa contracautela ainda pode ser requerida ao juiz, sendo, em qualquer hipótese, tratando-se de crime culposo, impossível a decretação de prisão preventiva, de modo que o agente necessariamente responderá o processo em liberdade (como, naturalmente, deve sempre acontecer).

Por fim, com a nova disposição normativa e consequente agravamento da sanção penal, espera-se que as futuras acusações decorrentes de acidente de trânsito, envolvendo condutor sob a influência de álcool, deixem de encampar a errônea tese de dolo eventual, artificialmente forjada com o único intuito de obter penas mais severas, malgrado a ausência dos elementos caracterizadores do dolo (que exigem, ao menos, a aquiescência do agente com o possível resultado criminoso).

Nesse ponto, solução mais adequada, do ponto de vista sistemático, está no PLS nº 236/2012, que inaugura o conceito de culpa gravíssima/temerária no ordenamento jurídico pátrio, trazendo como expressa hipótese a causação da morte (ou lesão corporal) na condução de embarcação, aeronave ou veículo automotor sob a influência de álcool ou substância com efeitos análogos (além da participação em racha).