Senhora das nuvens de chumbo, senhora do mundo, dentro de mim

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  • Da Redação

Publicado em 2 de dezembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Nunca fui santo. Nunca fui católico-apostólico-romano. Nunca engoli a eucaristia com aquela lisérgica dramaturgia de que bolacha insípida conteria o corpo de Cristo. Nunca acreditei que se o comungante mordesse a hóstia, o sangue de JC jorraria na boca e o comungante arderia no  inferno. [De repente, barata-de-igreja-voadora – beata nascida e criada nos esgotos das igrejas – me interrompe em pleno ofício de escrever, entra pela janela, e urra:  -  Herege! Quem és tu, escritor ordinário, para duvidar do indubitável?]  

A barata-de-igreja-voadora olha para os lados, vê o canto dos santos, pega vidro de seiva de alfazema, quebra-o em mil cacos, sai em disparada, e me maldiz:  - Tu és pederasta, eu sei. Escória! Vais morrer na sarjeta picado por bicho peçonhento! [Resmungo:  - Sai de mim, abacaxi. Tomei leite agora, bruaca azeda!]

Nunca fui santo. Sempre os adorei:  lindos, coloridos, tropicalistas, psicodélicos, pintados em belas estampas emolduradas com esmero, que sempre me seduziam nos quartos e salas nos quais minha mãe os pendurava.

A invasão da barata-de-igreja-voadora é desvanecida pela lembrança dessas imagens de santos que pontuam meu universo onírico. Já adulto, habitante de cidades maiores, buscava imagens similares para enfeitar o meu imaginário. Sem porto seguro, eu abandonava essas estampas, e só às vezes conseguia transportá-las.

Em Brasília, a vontade de tê-las por perto voltou. Pensei em escrever romance sobre garoto transviado que aspirava a santidade (baseado em fato real). Não desenvolvi o projeto. O jovem se matou.

Então comprei livros sobre santos e formei minicoleção de imagens. A primeira compra foi Santa Bárbara, cuja efígie – (moça loira que usa coroa de microtijolos dourados e carrega nas mãos ramo de oliveira, espada e cálice) – nunca me saíra da cabeça.

Essa imagem de Santa Bárbara foi comigo. Campinas, Recife, e, de novo, Brasília – onde, em 2014, manhã caótica, bati a mão sem querer na imagem de Santa Bárbara, que caiu e se partiu em dois pedaços: corpo e cabeça. Resolvi guardá-los assim. [Experts em hagiografia afirmam: Santa Bárbara foi executada por degolamento].

Aqui, onde moro há 2 anos e meio, comprei mesinha e erigi altar para os santos. Ali deitei a cabeça e o corpo de Santa Bárbara e ali jazeram por longo tempo.

Enquanto isso, escrevendo a mil para tentar pagar contas, 4 (ou 5 ou 6) mulheres de casa das cercanias ouviam música típica de lupanares em altos decibéis. Nada contra música de lupanar – tudo contra música em volume máximo. Queixei-me a familiares e a amigos, nada a fazer, a rua é pública, e em Brasil sem lei só me restou ficar quietinho.

Um dia cansei. Lembrei da imagem degolada de Santa Bárbara. Peguei cola e uni as partes. Coloquei-a, meio oculta, no meio dos caqueiros da janela – e rezei.

Não ouço música de lupanar em altos decibéis desde então. Meu ceticismo crê em milagres com reservas. Mas talvez tenha acontecido algo similar bem aqui sob o meu nariz.

[Viva Santa Bárbara. Eparrei, Iansã! Axé!]