Sobre traves, argueiros e a Mulher de Roxo

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 20 de junho de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Criada na cidade, menina presa em casa, sempre vi a rua pela janela como quem sente o arranhar incômodo de um cisco, um cílio ou, quem sabe, o argueiro no olho de que falavam as freiras do catecismo. Lembro bem: “impede de ver a trave”. Ou seria o contrário? E eu, que nunca soube direito o que eram o argueiro ou a trave, ponho até hoje essa frase na conta das letras que se canta sem noção.

A rua mesmo, eu só via pela vidraça. Brincar bem perto, com os vizinhos e os colegas de escola. Sair com os pais. Fugir, bom, isso era de direito. Mas, minha fuga perfeita sempre foi para dentro, dos livros e das revistas em quadrinhos. Da porta para fora, eu sentia doerem em mim os limites da cidade, a longínqua praia dos surfistas, um mundo que parecia correr em paralelo às páginas que eu lia.

Costumava andar muito à vontade pelas ruas do bairro... nas revistas da Luluzinha. E de tal modo que, ao reler uma delas, depois de muitos anos, confesso que experimentei a sensação de estar voltando para a minha turma. Tanta reclusão na infância talvez justifique o fascínio que sinto pelos tipos urbanos. Parte desse fascínio, eu transferi, na vida adulta, para os artistas que se apresentam nos semáforos.

Equilibrando malabares coloridos, no alto de monociclos, esses artistas salpicam de estrelas o caminho até o trabalho. Recompensados com notas esquecidas nos porta-luvas, seus pequenos espetáculos ficam registrados em vídeos capturados através dos para-brisas. Meninos em situação de rua, argentinos on the road, moças com roupas de circo, guardadores de carro dançando na chuva ao som de Belchior.

Distrações em longos engarrafamentos saudosos, nos quais se podia chorar até sentir vergonha ou tomar decisões pra toda a vida. Que seria do mundo sem os esquisitos, às vezes me pergunto. Bem monótono, eu respondo. Lembro de quando vi a Mulher de Roxo na Rua Chile pela primeira vez. Eu andava amedrontada por todo tipo de rosto desconhecido quando entrei com minha mãe na Casa Sloper.

Na porta da loja, já saindo, vi de relance que ela vinha em nossa direção. Minha mãe nunca sentiu medo de ninguém. Fazia parte de sua natureza generosa olhar os outros com o coração. O meu, de pouco mais de oito anos, pequeno e agitado, batia acelerado diante daquela mulher imensa que se aproximava perigosamente de nós, e que parecia deslocar o vento enquanto se movimentava. Era como se a sua presença fosse um hífen entre épocas distintas, a Cidade da Bahia encarnada, transitando entre os séculos. Eu estava apavorada. Minha mãe, no entanto, não se movia, por mais que eu a puxasse pelo braço. Só quando já não havia escapatória, decidi me encolher inteira atrás dela. A Mulher de Roxo passou por nós sem parar, perto, bem perto. Tão perto que quase pude sentir a sua dor.