Sorry, mama, a felicidade não se compra

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  • Da Redação

Publicado em 4 de novembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Na vitrolinha azul presenteada por minha mãe ouvia tudo. De Roberto Carlos a Rita Pavone. Passando por Caetano Veloso, Jerry Adriani, e Beatles, claro. No meio da tarde quente punha o som no último volume e, entre dever de casa e outro, quando não havia testemunhas, rebolava feito pião sem rumo. Suava em bicas com a expressa intenção de derreter as adiposidades que me adornavam a cintura.

Às vezes minha mãe me flagrava no meio de algum rodopio mais desengonçado e me olhava com o rabo de olho, cúmplice. Tudo que a minha mãe queria, do mais fundo do coração, era que eu me tornasse feliz. [Dona Águida morreu há mais de 40 anos e, vicissitudes do destino, ainda estou em dívida com ela – e não há nenhuma garantia de que eu ainda lhe pague esta dívida. Felicidade, como se sabe, não se compra. Sorry, mama!].

Dona do nariz, minha mãe ganhava o próprio dinheiro. Artista multimídia – costureira, artesã, cozinheira, doceira e cabeleireira -, não dependia da ajuda do meu pai nas despesas mais básicas. Entre essas despesas mais básicas estavam pequenos dinheiros que, com prazer nos olhos cristalinamente azuis, me dava para comprar gibis, discos, entradas de cinema e otras cositas más.

Além da vitrola também ganhei gravador de então última linha – tijolaço com mais de dois quilos que funcionava à base de fitas cassete que com frequência se engalfinhavam, se embaralhavam, e tudo que fora gravado se perdia. Tinha microfone à parte, trambolho fálico com o qual eu captava tudo: barulhos da rua, descarga da privada, programas-flávio-cavalcanti, novelas de rádio, miados de gatos – o que viesse eu gravava.

Esse mimo precioso que nenhum dos meus amigos ainda tinha lhe custou pequena fortuna. Valeu cada centavo. Amei, ah como eu amei aquele gravador rudimentar.

Não faço ideia se minha mãe me deu o gravador antes da vitrola, ou o contrário. Certeza absoluta: foram as joias da coroa entre os presentes que ganhei de minha mãe para me tornar criança feliz, e, por tabela, homem feliz.

Comprava vinis – ou LPs, long playings – na Butique Discos, sempre recheadas de novidades importadas do Rio e São Paulo. Um fim de tarde deparei com LP recém-lançado. Chamava-se Tropicália, e que capa, cara, que capa! [Dentro geleia geral de sons psicodélicos capitaneados por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e trupe de bambas].

Sem verba, corri até em casa e pedi à minha mãe o dinheiro necessário para a compra. Ao escutá-lo pela primeira vez – e depois centenas de vezes – fiquei chapado, alucinado, siderado. [Sempre que o ouvia, constatava: a felicidade podia não existir, mas existiam e existem momentos felizes].

Desapontamento: minha mãe não gostou do som meio atravessado tropicalista. Passava zangada ao meu redor quando eu escutava as canções dissonantes e estrambóticas, e sempre dizia: - Que zoada é essa, Roge? Isso lá é música?

[Dizia isso tantas vezes com a mesma cadência e o mesmo tom que – talvez por me amar tanto – também tenha aprendido a amar a Tropicália].