Soteropolitano 'fala pegando'? Hábito divide opiniões e deixa gringos incomodados

Tocar um desconhecido ou abraçar e beijar alguém que acaba de conhecer é algo bastante inconveniente em muitas culturas. Portanto, cuidado ao usar o tato para manter contato

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  • Da Redação

Publicado em 29 de março de 2017 às 03:00

- Atualizado há um ano

Se você é cheio de não me ‘toques’, evite Salvador. Reza a lenda que há uma selva de mãos no reino da Barroquinha onde, quando menos se espera, lhe seguram pelo braço na preliminar de um ataque de ofertas: ‘Compre aqui na loja que é melhor, coisinha’; ‘Não, aqui é mais barato! Venha!’.

Nas planícies do Comércio, multiplicam-se relatos sobre redemoinhos de dedos, sempre à espreita para atacar quem padece distraído no ponto de parada. E no vacilo irredimível, o ombro é atacado! ‘Meu filho, esse ônibus passa no Campo Grande?’, diz a senhorinha, implacável nas cutucadas. Zera a reza, segue a ladainha: em Salvador o povo fala pegando.Mas, feita a constatação, até que ponto impor uso ao tato é um problema? Justamente ele, único sentido que extrapola os sete buracos da cabeça, ser colocado a sete palmos! A publicitária Mariana Suzart, 31 anos, também pensava assim, até uma viagem aos EUA. Foi ser educada, à moda soteropolitana, e trouxe na bagagem uns gritos no pé do ouvido.

“Eu estava com meu marido no Navy Pier, ponto turístico de Chicago, e tinha uma corrente que separava do lago. Ele [maridão] pediu pra eu pular, porque o ângulo da foto ficaria melhor. Daí veio um policial e me mandou sair dali. Fui pedir desculpa e, de forma involuntária, toquei nele e ele começou a gritar: 'don't touch me!' ('não toque em mim!')”, relatou. Depois do episódio com o tira, passou a se policiar: nada de relar em gringo desconhecido.O biólogo Melek Alerson em sua casa, no bairro de Macaúbas, onde já hospedou, de graça, mais de mil estrangeiros (Foto: Betto Jr./CORREIO)AdaptaçãoO hábito de tatear – tocar, abraçar, beijar uma pessoa que acaba de conhecer – não agrada, ao menos num primeiro momento, a maioria dos estrangeiros que vêm dar um rolé por aqui. Mas, com o tempo, essa ‘pegofobia’ vira apego, de acordo com o embaixador da boa vontade soteropolitana, o biólogo Melek Ângelo Alerson, 35. Sem cobrar nenhum caraminguá, ele já recebeu em sua casa, no bairro de Macaúbas, mais de 1.500 turistas, 90% estrangeiros. “É um comportamento que eles não estão acostumados. Muitos, mesmo achando estranho, tentando se proteger, com o passar do tempo percebem que isso é um costume local e muitas vezes sentem falta desse contato quando voltam aos seus países”, analisa Melek, que se conecta com a legião estrangeira através do site Couchsurfing. Os visitantes mais frequentes são mulheres vindas da Alemanha.

Uma delas, a estudante de Psicologia Ursula Anton, 22, passou quatro dias em Salvador. A adaptação chegou rápido, mas não em padrão autobahn. Pegou a BR engarrafada. “Francamente, me sinto incomodada se alguém que eu não conheço bem me toca. Para mim, isso é uma invasão no meu espaço privado. Não gosto. É da minha cultura. Sei que as pessoas aqui acham normal, carinhoso e amigável. Tento me adaptar um pouco”, garante Ursula, sem deixar de reconhecer que a encanta nossa disposição em sempre querer ajudar.Com nome de sexóloga famosa, a arqueóloga romena Laura Müller, 29, que vive em Berlim, também se preocupa com excesso de genteboísmo. Para ela, é difícil distinguir, aqui, quem quer se aproximar por amizade ou por enxergar alguma ‘oportunidade’. “Geralmente, me senti desconfortável porque estou acostumada a um tipo diferente de tratamento. Na Europa, você toca as pessoas se quiser enviar uma mensagem dizendo que gosta delas. Então, isso me deixou desconfortável porque eu não sabia se os baianos queriam dormir comigo ou estavam apenas sendo excessivamente amigáveis”, comenta.O japonês Shun Ayabe, 30, que mora em Salvador desde julho, conta que foi difícil se adaptar: em seu país se valoriza a distância física entre as pessoas (Foto: Arquivo Pessoal)De uma cultura ainda mais “fechada”, o japonês Shun Ayabe, 30, funcionário de uma multinacional com sede em Tóquio, ainda tenta se adaptar à capital baiana, onde vive desde julho. “Nos primeiros meses, tinha dificuldade de me acostumar aos comportamentos, além da barreira da língua, que são bem diferentes da cultura japonesa em que se valoriza uma distância física entre as pessoas”, cita Shun.

Bem recepcionado, no entanto, também tem se adaptado. “A meu ver, tais atitudes baianas facilitam e ajudam a manter as amizades. Agora, tenho medo que possa ajustar meus comportamentos à cultura japonesa, depois de voltar para lá”, confessa, descontraído, o novíssimo fã do Carnaval baiano, que esse ano trouxe 60 mil turistas estrangeiros à cidade, segundo estimativa da Secretaria estadual do Turismo (Setur). “Quase todos os dias saía na pipoca e aproveitei bastante”, conta. Nessa cidade todo mundo é do Shun.

ProxemiaDe acordo com o sociólogo Leonardo Nascimento, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), a antropologia e os estudos sobre proxemia tratam dessa questão da proximidade, no qual indicam um “modo típico de nos relacionarmos com o nosso corpo”, forjado dentro de cada tradição. “É aquilo que o antropólogo francês Marcel Mauss descreveu como ‘técnicas corporais’, modos de usarmos o nosso corpo que é próprio a cada cultura. Mas, mesmo em Salvador, isso varia por sexo, idade, classe social etc”, pontua.A escritora Agnes Mariano, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e autora do livro “A Invenção da Baianidade”, concorda que essa abordagem diferente não é mero folclore. “Na cultura baiana, a distância física entre as pessoas é menor do que a distância física aceitável em outros contextos. Percebemos isso claramente quando estamos em outro estado ou país. Há também uma aceitação do toque entre estranhos e amigos como algo natural. Em outros contextos, pode ser entendido como um sinal de paquera ou algo invasivo”, conclui.Fala, mas não pegaMas quem disse que é só quem não tá acostumado que chia desse nosso pega-pega? Na falta do contato de Miltão, compositor de 'Depois Que o Ilê Passar' (1984), hoje radicado em Alagoas, perguntei a Vovô do Ilê se o “não me pegue, não me toque” tinha a ver com esse hábito pegajoso. Admitiu. “Tenho certeza que fez essa música porque aqui na Bahia a gente tem muito essa mania de falar pegando. Então, na música do Ilê, como era um bloco diferente, as pessoas davam um toque nas costas assim com a ponta do dedo pra saber 'que é que tá acontecendo', 'que bloco é esse?', 'que musicalidade é essa?'. Então, com certeza ele se inspirou nisso”, contou, aos risos.Oito anos depois, Daniela Mercury subiu a Ladeira do Curuzu pra reforçar o faz-favor: “Não me pegue, não. Me deixe à vontade”, exige trecho do pot-pourri de 'O Mais Belo dos Belos' (Guiguio) e 'O Charme da Liberdade' (Adailton Poesia e Valter Farias), no disco ‘O Canto da Cidade’.Ednilson Sacramento, cego há 20 anos, no Farol da Barra, local preferido para passear em Salvador por ter mais referenciais ambientais (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)Da cabeça aos pésO tato, no entanto, é a principal referência para a locomoção do estudante de Comunicação Social da Ufba, Ednilson Sacramento, 55. Ele teve retinose pigmentar, doença que causa a degeneração da retina, e ficou cego há 20 anos. Desde então, seus cantos na cidade são mapeados através dos pés, das mãos, enfim, do contato físico.

“Sem enxergar, a gente termina rastreando a rua. Você percebe o que é um gramado, uma calçada sem concreto. O tato dos pés em relação à cidade é mais útil do que usar as mãos”, explica o sempre animado Ed, que não nega contato com desconhecidos. “As pessoas ajudam a caminhar. É sempre bom ter esse contato, e aqui a gente tem esse calor humano. Mas as pessoas precisam sair do meio da calçada”, reclama, aos risos.

A explicação para o invariável bom humor de Ednilson o neurocirurgião José Marcos Pondé, professor adjunto do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da Ufba, talvez tenha dificuldade de explicar, mas como o tato manda informações ao cérebro é barbada. “A informação da sensibilidade vem pela medula espinhal, ascende ao tálamo e depois ao cérebro, propriamente dito, terminando em uma área específica. O tálamo é uma estrutura cerebral que pode ser comparada ao quadro de luz de uma casa: recebe toda energia advinda da rua e canaliza para diversos pontos, que é o cérebro”, ensina.Morador da San Martin, Ednilson elege o Farol da Barra como seu cantinho preferido. Tem lá a melhor combinação de referenciais ambientais: o mar entregue pela brisa, a sombra que denuncia os prédios, o vento que sinaliza a esquina; o piso regular, o tátil, e o tato do soteropolitano, o melhor calor humano que você respeita.