Stan Lee: o pai da mitologia americana

Senta que lá vem...

  • D
  • Da Redação

Publicado em 13 de novembro de 2018 às 09:22

- Atualizado há um ano

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Tudo bem que Stan Lee não criou o primeiro super-herói dos quadrinhos, o Super-homem, em 1938 - bem podia ter sido, pois tinha 16 anos de idade e era um menino prodígio. Mas foi ele quem tirou seu caráter infantiloide e o reaproximou do mundo real e dos humanos. Ao fazer isso, bastante influenciado por Jack Kirby, um fascinado por mitologias de todas as épocas, por mais contraditório que pareça, inventou a mitologia americana contemporânea. Sim, Lee criou personagens super-poderosos cujo sentido e a veneração popular é próxima à de deuses. Mas não é isso que quero dizer.

Um dia fiz tal relação em um texto e um leitor me espinafrou, disse que eu tinha escrito besteira porque, para ele, mitologia só tinha a ver com Grécia e Roma Antigas. Está na Wikipédia e em vários dicionários que os mitos são, geralmente, histórias baseadas em tradições e lendas, representadas por deuses e heróis, feitas para explicar o universo, a criação do mundo, fenômenos naturais e qualquer outra coisa a que explicações simples não são atribuíveis. E não foi foi isso que Lee fez ao reinventar o conceito de super-herói? E em um contexto de guerra fria, ideológica, entre comunismo e capitalismo, para reafirmar a superioridade americana dentro da noção de superpotência, habitada por super-homens, seres fantásticos e até super-heróis?

Os soviéticos podem não ter acreditado. Mas os americanos, sim. Lee cumpriu seu papel porque acreditava no que fazia, na ideologia capitalista, de afirmação e reafirmação de seu povo e de sua nação. Aliás, se pegarmos a primeira história do Homem de Ferro ficamos assustados com o sentido radicalmente anti-comunista e preconceituoso que ele deu ao nascimento do super-herói. Ao mesmo tempo, ele incorporou o ideal americano e bíblico da Terra Prometida e a povoou com seus deuses incríveis, fruto de sua incrível imaginação. Ele próprio parecia imortal, ao viver quase um século. Mas isso é o que menos importa porque criou a base para além do caráter ideológico, consolidou um delicioso entretenimento, combateu o preconceito, ensinou muitas crianças a fazerem um mundo melhor. Por isso, Lee era meu super-herói preferido. Sempre será.

Os quadrinhos são um dos pontos centrais do que existe de mais original e nacionalista na cultura americana, tida como pobre intelectualmente, o que é uma estupidez e uma arrogância, principalmente das cabeças pensantes europeias. Espezinhados, idiotizados, queimados em praça pública, tratados como subcultura, indutores de crime, prostituição e homossexualismo ou entretenimento para crianças, semianalfabetos e desocupados, os comics moldaram a vida americana nos últimos cem anos. Ainda mais na era da revolução digital, quando tomaram de assalto o cinema, a TV, os games e toda a indústria do entretimento. O sujeito que morreu hoje, aos 95 anos, que todos chamam de Stan Lee, foi a mente por trás disso tudo.

Um dia, quando os quadrinhos virarem arte, seu nome triunfará no topo dos grandes heróis americanos de todos os tempos, um dos gênios da cultura de seu país. Tão herói quanto os super-seres que ele criou. Quem viver, verá.

Gonçalo Junior é jornalista e escritor.

Texto originalmente publicado no Facebook e replicado com autorização do autor.