Sulivã Bispo dá vida a Madame Satã em biografia musical e poética

Espetáculo dirigido por Thiago Romero segue em cartaz de 2 a 12 de agosto, no Martim Gonçalves

Publicado em 28 de julho de 2018 às 06:20

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Ele nasceu como João Francisco dos Santos(1900-1976), mas se consagrou como Madame Satã, o valente e temido malandro que incendiou o Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. Nascido no interior pernambucano, em uma família com outros 16 irmãos, Satã carregou no corpo todas as marcas do ser marginal: nordestino, preto, pobre e homossexual.  A violência com que era tratado pela sociedade, voltava com a mesma potência para os seus algozes.  Talvez por isso tenha se tornado um mito e suscitado uma série de pesquisas acadêmicas e trabalhos artísticos desde então. O mais recente é o espetáculo poético-musical Madame Satã, que ganha o palco do Teatro Martim Gonçalves (Canela), de 2 a 12 de agosto. Quem dá vida ao lendário personagem é o ator Sulivã Bispo, que tem feito sucesso como Mainha na websérie Na Rédea Curta. O nome de Sulivã foi o primeiro a vir na mente do diretor Thiago Romero, que há pelo menos uma década pensa em montar um espetáculo em homenagem a Madame Satã. “Quando ele me viu em um espetáculo do Curso Livre da Ufba, em 2013, ele me contou que tinha sentido uma energia de Madame Satã em mim”, diz o ator, ao lembrar das primeiras conversas sobre o assunto com o diretor. (Foto: Diney Araújo/ Divulgação) Na época, os dois tinham como referência principal o trabalho do ator Lázaro Ramos no filme de Karim Aïnouz, de 2002. “Lázaro fez o filme quando tinha 24 anos, Sulivã está com 25. Isso é curioso, parece que Madame Satã gosta de estar em corpos jovens”, diverte-se Romero.Grito Malandro, artista, transformista, capoeirista e cozinheiro, João Francisco dos Santos ganhou a alcunha de Madame Satã depois de vencer um concurso de fantasia no Carnaval de 1942.  O filme de Aïnouz para aí, na transformação do homem em mito. Mas a inquietação de Thiago Romero segue adiante e, na sua montagem, vemos Satã chegar à velhice. “Ele consegiu viver 76 anos! Temos de lembrar que é algo extraordinário uma  bicha preta e pobre morrer de velhice nesse mundo”, destaca. Lázaro Ramos como Madame Satã no filme de Karim Aïnouz; na cena, Flávio Bauraqui interpreta Tabu (Foto: Divulgação) A maior parte dos seus 76 anos foram vividos na boemia de uma Lapa decadente. Em um período em que não se sabia o que fazer com ex-escravos e descendentes, encontrou seu espaço se valendo, muitas vezes, da força física. Sua folha corrida incluía dez condenações, três por assassinato, que totalizaram quase 28 anos atrás das grades. O modo como narrava as brigas com os policiais que suspeitavam dele apenas por ser negro e pobre ajudou a forjar a figura de gay muito macho, bom de briga e fera na navalha.  Para Thiago Romero, a luta de Madame Satã sempre foi por respeito e contra discriminações. Por isso, espera através do personagem fazer o público refletir sobre os tempos de outrora, mas sobretudo, sobre os tempos atuais. “Eu espero que o espetáculo venha a endossar esse grito contra essa violência, essa onda de conservadorismo, que tem nos afetado, não só no Brasil, mas no mundo. Espero que as pessoas possam refletir e que avancemos. Não podemos ficar só assistindo, é um grito”, diz o diretor. 

[[saiba_mais]] Nascido no Rio de Janeiro, Thiago Romero chegou a morar por anos próximo à Lapa, local onde o mito de Madame Satã se criou.  “Sempre escutei sobre a história dele e sempre me interessei por esse estigma de malandro, por tudo que na história oficial transforma ele em um um anti-heroi”, lembra, ao destacar o quão oportuna parece a estreia, tantos anos depois. “Foi um projeto que sempre fui engavetando, que me exigiu muita pesquisa e que chega nesse momento, de tanta intolerância.É uma homenagem a todas as bichas pretas, um ato político contra o silenciamento dos corpos”, defende.

Cadência Além de Sulivã, outros 12 atores interpretam personagens e dão vida, com suas vozes e corpos, à boêmia carioca dos anos 30. Um deles é Thiago Almasy, que faz sucesso como Júnior, ao lado de Sulivã, no Na Rédea Curta. Em determinado momento do espetáculo, ele vive o jornalista do Pasquim, responsável por uma das mais emblemáticas entrevistas de Madame Satã. “A gente reencena a entrevista, com perguntas sobre temas que estamos discutindo hoje. O que será que ele diria caso estivesse vivo e pudesse opinar sobre tudo isso? É essa reflexão que queremos fazer com o público”, explica.  É a música quem guia os espectadores por esse e outros momentos marcantes da vida de Satã. “O espetáculo é uma biografia musicalizada, que pensa a música como instrumento de debate e discurso da negritude”, diz o diretor musical Filipe Mimoso. As composições variam entre funk, rap e samba. “Quis dar uma atemporalidade à trilha, porque o próprio Madame é atemporal. Ele tem muitas referências musicais americanas, francesas...Estava à frente, mas misturava vários tempos”, explica Mimoso sobre o mote da trilha. Apesar dos samples eletrônicos, o som orgânico não fica de fora, com instrumentos como a guitarra e a percussão. Já a preparação corporal “partiu do entendimento do que seria o malandro dessa década de 30, um malandro que está fora do estereótipo heterossexual e cisgênero”. Para Edeise Gomes, que assina a coreografia de Madame Satã, os movimentos de Sulivã na peça fazem referência a movimentos da capoeira, do samba, de Carmen Miranda e até mesmo da Bahia. “É um espetáculo baiano, uma releitura da vida e da obra desse personagem, então não tínhamos como desprezar isso”, conta Edeise. Essa não é a primeira vez que essa equipe trabalha junto. A diferença, agora, dizem, é a oportunidade de estrear o espetáculo no Teatro Martim Gonçalves, da Escola de Teatro da Ufba. “É um carinho em nossa gente poder contar essa história nesse palco, que não tinha espaço para gente, para esse tipo de narrativa, até pouco tempo. É preciso mudar o olhar”, destaca Almasy.