Tá rolando 'xepa da vacina' na Bahia ou má administração das doses?

Sobras de imunizante em frascos são tratadas de diferentes formas por municípios

  • D
  • Da Redação

Publicado em 5 de junho de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arquivo CORREIO

Jorge Souza ainda não pertencia à faixa etária que estava recebendo vacina na cidade de Itabuna. No início do mês de maio, o professor foi num posto tentar incluir alguns colegas mais velhos na lista de imunização. Contudo, foi o próprio Jorge quem acabou vacinado. No final do dia, enquanto aguardava ser atendido, um profissional de saúde olhou para ele e perguntou: “você quer se vacinar? Sobraram duas doses aqui”. O docente recebeu a agulhada dele, como se tivesse acertado na loteria. O professor não furou fila, diga-se de passagem. Estava apenas no lugar certo, na hora certa. Sem saber, Jorge fez parte da "xepa da vacina", uma forma alternativa de conseguir o imunizante, antes da hora, com as sobras do dia.   Você deve estar se perguntando: que diabo de sobras são estas? Então, pense que cada frasquinho de uma vacina tem o número certo de aplicações. A Coronavac, por exemplo, vem com 10 agulhadas, por ampola. Abriu um frasco, dez vacinados. Vamos imaginar que no final do dia, quando a fila termina e o dia acaba, um agente de saúde verifica que, de um frasquinho, aplicou oito doses, restando duas. Estas são as xepas. Elas precisam ser aplicadas com certa urgência, pois só podem ficar abertas por, no máximo, seis horas. Depois disso, perdem a eficácia e vão parar no lixo. Um sacrilégio! Se o município não tiver uma lista de espera para essas xepas ou um destino certo, quem estiver vacilando por perto do posto leva a agulhada da salvação, como aconteceu com Jorge.  “O profissional de saúde me disse que, quando abre a ampola, não pode mais guardar.  Sobraram duas doses no dia que fui vacinado.  Ele pegou um menino que estava passando na hora e eu. Perguntei se não era furar fila e tal, mas ele disse que não. Afirmaram que antiético seria jogar as doses, que sobraram, fora. Outra amiga foi levar o pai para se vacinar em Ilhéus e acabou se vacinando também pela xepa”, afirma Jorge Souza, que tomou a Oxford.Ele recebeu o cartão de vacinação e tomará a segunda dose no final de julho, independentemente das sobras. O CORREIO procurou a secretaria de saúde de Itabuna para comentar o assunto, mas nenhum contato disponibilizado no site da prefeitura atendeu. Segue o baba.  Em Salvador, o lema é não sobrar nenhuma dose. Xepa da vacina na capital, nem pensar (Arisson Marinho) Desde o início da pandemia, em março do ano passado, a artista Ana Dumas trabalha remotamente de Prado, extremo sul baiano. Na última sexta-feira, recebeu uma ligação do posto próximo de sua casa. A agente de saúde avisou que tinha uma dose sobrando. “Minha primeira reação foi um sentimento contraditório de estar furando a fila. Não queria. Só depois de muita conversa, vi que se tratava da xepa. Uma pessoa com comorbidade e dificuldade de locomoção se confundiu e foi parar em outro posto de vacinação. Acabou vacinada lá, deixando uma dose sobrando no posto perto de minha casa. Meia hora depois de muita conversa, decidi tomar. Foi a Coronavac. Existe um desconforto de quem tomou por meio da xepa, de achar que furou a fila. Mas nem sempre é isso”, disse Ana.   Adriana Cravo não teve a mesma sorte de Ana e Jorge. Ao saber, de uma amiga, que São Paulo tinha uma lista de espera para quem quisesse tomar doses da xepa da vacina, resolveu fazer uma verdadeira peregrinação pelos pontos de vacinação de Salvador. Foi na Fonte Nova, Quinto Centro e em um posto em Ondina. Não achou nada. “Há 20 dias, uma amiga de São Paulo colocou seu nome numa lista de xepa num posto próximo de sua casa. Sobrando, eles vão ligar pra ela ir tomar, com urgência. Aqui parece não existir isso. É um mistério e ninguém quer falar sobre o assunto”, disse Adriana.   “Fui na Fonte Nova, me falaram que, quando sobra, enviam para hospitais, mas não souberam me dizer quem é vacinado. Nem me deixaram passar da triagem. No Quinto Centro, asseguraram que não existe xepa aqui, pois não sobra nada. Já em Ondina, fiquei na fila para obter informação, aguardando os últimos vacinados. Quando pedi para entrar e falar sobra a xepa, me disseram que o expediente estava encerrado. Amigos daqui me falaram que no interior é mais fácil conseguir essas sobras. Estou indignada com a forma misteriosa com que os excedentes da vacinação estão sendo tratados em Salvador”, completa Adriana.   Para quem ainda sonha com xepa na capital, melhor sentar no sofá e esperar sua vez na fila da vacinação. O lema é zero desperdício. Secretário de saúde de Salvador, Léo Prates também explica que a xepa pode gerar algumas irregularidades e injustiças na aplicação destas sobras. “Não temos este procedimento aqui (xepas). Eu acho isso injusto e uma porta aberta para fraudes. Na hora que se possibilita uma pessoa no final do dia se vacinar, como você sabe se realmente foi sobra de dose ou alguém usou uma dose e remanejou outras nove para usar como xepa? Faço, não”, questiona Prates. Segundo o secretário, doses que porventura sobrem são encaminhadas para hospitais ou para uma lista com nomes de pessoas que estão dentro do público alvo.    Para conseguir ser vacinado pela xepa na Bahia é preciso estar no lugar certo, na hora certa (Reprodução) Na última quarta-feira, o CORREIO visitou o posto de vacinação do Quinto Centro, à paisana, à procura de sobras de vacinas. De fato, deixar dose sobrando é como jogar pedra na cruz. No fim do expediente, às 15h, quatro pessoas aguardavam para serem vacinadas com a imunizante da Oxford/Astrazenica. Cada frasquinho deste imunizante pode vacinar cinco pessoas. Aí já viu. As profissionais de saúde não abriram uma nova ampola enquanto não chegasse mais uma pessoa para fechar a conta. Quarenta minutos depois de encerrada a vacinação, finalmente uma senhora chegou para tomar a segunda dose da Oxford. Só então o frasco foi aberto e o dia encerrado.   “Aqui vacina a vale ouro. Não pode ficar nada no frasco. A ordem da prefeitura é não sobrar nada. Se depender da gente, nunca teremos xepa, pois não vamos deixar sobrar nada. Só abrimos novas ampolas, no final do dia, quando tem procura. Se tiver faltando uma pessoa, madrugamos aqui até aparecer. Na última segunda, esquecemos de olhar o nome de uma pessoa que estava na fila, contamos e deu certinho para abrir uma ampola. Depois, vimos que o senhor não fazia parte do grupo prioritário. Tivemos que aguardar alguém chegar”, disse uma profissional de saúde, que não quis dar o nome. “Sempre chegam algumas pessoas atrasadas para se vacinar. Praticamente não sobra. Quando sobra, mandamos para outros postos ou para hospitais, mas não usamos esta coisa de xepa. Não pegou isso aqui em Salvador”, completa.   Algumas cidades do interior seguem a mesma filosofia da capital. Não pode sobrar nada. “Quando chega no final do dia e estamos utilizando ampolas multidoses, nós só abrimos quando temos a quantidade necessária de pessoas. Quem deixa para última hora, corre o risco de, se não tiver gente suficiente, não abrirmos ampolas novas. Não podemos perder nenhuma dose de vacina. Está faltando dose e não podemos desperdiçar”, disse o secretário de saúde de Feira de Santana, Marcelo Britto. Caso, por ventura, sobre vacina, agentes comunitários de saúde ligam para pessoas cadastradas com comorbidades para saber se podem tomar a vacina naquele instante. Mas apenas em casos específicos. A ordem é não abrir ampola se não houver equilíbrio entre oferta e procura.  Em São Paulo, a xepa da vacina virou uma espécie de novo grupo prioritário, mas por ordem de chegada. Primeiro, pacientes com comorbidades eram prioridades, mas fugiu do controle. Em alguns postos de vacinação, existe uma lista grudada na parede para ser colocado o nome de quem quiser aguardar uma sobrinha de vacina no fundo do frasco. Segundo o portal Agora São Paulo, vinculado à Folha, a lista de espera pode chegar a 6 mil interessados, a depender do posto de saúde. Lá, mais de 2 mil doses de vacinas da xepa são aplicadas na turma que apela para as "sobras".   Essa quantidade de doses remanescentes em São Paulo inflaram a esperança de João Henrique e Mariana Campos aqui em Salvador. Ele tem 22 anos e ela 21, ambos sem comorbidades. Os dois pensaram na possibilidade de serem vacinados antes do previsto, por meio da xepa, no Quinto Centro, nos Barris. Contudo, foram embora frustrados e sem saber quando serão vacinados. “Vimos que nos outros estados estão rolando essas xepas. É frustrante saber aqui que não existe xepa. Tem que ter xepa! Muitas pessoas não estão vindo tomar a segunda dose, está sobrando vacina, sim. Continuo com esperança de me vacinar antes”, conta Mariana, que voltou sem a agulhada no braço, assim como João Henrique. “Mandaram a gente voltar pra casa e esquecer, pois não existe xepa em Salvador. É uma frustração”, completa João, que saiu abatido do lugar.   É preciso não confundir xepa com ampola fechada e não aplicada por desistência. Só em Salvador, mais de 22 mil pessoas não foram tomar a segunda dose na qual tinha direito. Contudo, não pode ser considerada sobejo, pois as ampolas sequer foram abertas. Ficaram lá, no frio do freezer, aguardando o filho de Deus que não foi completar seu ciclo por algum motivo. Já a xepa é como um refrigerante aberto. Se não consumir logo, perde o gás. Para se ter uma ideia, das 3,4 milhões de pessoas que tomaram a primeira dose da vacina na Bahia, apenas 1,55 milhão completaram o ciclo com a segunda dose. Se a vacinação continuar neste ritmo, a única xepa que conheceremos será aquela do Big Brother Brasil: todo mundo comendo regrado e esperando sua vez de ser vip.  Como funciona a xepa da vacina? (passo a passo) 1. Cada frasco (ou ampola) da vacina tem um número de doses sugerida pelo fabricante. Oxford: 5 doses Coronavac: 10 doses (também existe ampola única) Pfizer: 6 doses  2. Ao longo do dia de vacinação, as ampolas são abertas. Se o agente de saúde abre uma ampola da Coronavac, por exemplo, vacinará 10 pessoas com ela  3. Digamos que termina o dia de vacinação e não tem mais ninguém na fila. Contudo, uma das ampolas da Coronavac vacinou oito pessoas, sobrando duas doses. Não é possível guardá-las, pois sua vida útil, quando aberta, é de 6 horas. Elas são justamente as xepas ou sobras 4. alguns municípios pelo Brasil possuem uma lista de xepa, onde a pessoa coloca seu nome e aguarda estas sobras em postos próximos de sua casa. Em outros lugares, é de forma avulsa mesmo. Quem estiver passando na hora, é chamado e vacinado