'Temos que mudar essa cultura das brigas', pede tio de jovem morto na Graça

Caminhada neste domingo (25) foi organizada por familiares e amigos de Kaique

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  • Thais Borges

Publicado em 25 de fevereiro de 2018 às 15:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Thais Borges/CORREIO

O percurso foi o mesmo que o estudante Kaique Moreira Abreu, 22 anos, tivera a intenção de fazer na sexta-feira de Carnaval (9): da Rua Manoel Barreto, na Graça, até o Farol da Barra. A diferença é que, neste domingo (25), a caminhada foi feita por cerca de 200 pessoas que pediam Justiça e uma reflexão após a morte do jovem. 

Kaique morreu depois de ser agredido quando voltava do circuito, naquela madrugada. Ele saiu da casa de um amigo, ali na Graça, às 23h30, acompanhado de quatro pessoas. Depois, o estudante se perdeu na multidão e decidiu voltar, por volta de 3h. A menos de 500 metros do apartamento onde estava, foi surpreendido com um soco no rosto. Quando caiu, levou um chute do agressor, o pintor Edson Rodrigues dos Santos, 27, que está preso. Cinco dias depois, Kaique teve morte cerebral.

Neste domingo, pouco mais de duas semanas após o crime, a família e os amigos do jovem promoveram o ato, pedindo mais do que o fim da violência. Para eles, era o momento de trazer duas mensagens para a população: sobre a importância dos primeiros socorros e sobre a conscientização para a doação de órgãos.  O grupo foi da Graça ao Farol da Barra (Foto: Thais Borges/CORREIO) Isso porque, naquela noite de Carnaval, Kaique foi socorrido por uma família. Uma das integrantes era justamente uma estudante de Medicina que ficou ao lado do jovem até a chegada do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).

No entanto, antes que o grupo surgisse, pelo menos dois adultos e dois adolescentes que estavam com o agressor omitiram socorro ao estudante. Os quatro foram embora, em um caminhão, como se não tivessem presenciado a cena.  

“Ele poderia ter sido salvo (se tivesse sido socorrido imediatamente). Por isso, estamos aqui com o objetivo de propagar a paz, a harmonia e o amor ao próximo. Temos que mudar essa cultura das brigas”, afirmou o tio de Kaique, o empresário Kildere Abreu, 52. 

Doação de órgãos Durante todo o trajeto, os participantes carregavam faixas, cartazes e balões na cor branca. Dos apartamentos, pessoas balançavam panos brancos. Muitos vestiam uma camisa com uma foto do estudante, acompanhada da letra de uma música do grupo O Rappa: ‘Para quem tem fé, a vida nunca tem fim’. Nos cartazes, era possível ler frases como ‘Vidas não podem ser reduzidas a números’ e ‘Até quando vamos perder nossos jovens para a covardia e a violência?’. A médica do Samu que atendeu Kaique também caminhou junto com o grupo. 

Em outras faixas, falavam da doação de órgãos. Depois que os médicos confirmaram que Kaique teve morte cerebral, a família do jovem decidiu pela doação. Ao todo, cinco pessoas que sofriam na fila de espera por um transplante foram beneficiadas pelos órgãos do estudante. Foram doados dois rins, duas córneas e o fígado.  Durante a caminhada, parte do grupo deitou na Rua Manoel Barreto, onde Kaique foi agredido (Foto: Thais Borges/CORREIO) “Não foram só cinco pessoas que receberam uma vida nova. Foram cinco famílias que tiveram suas vidas transformadas”, afirmou o microempresário Igor Aquino, 38, amigo da família e um dos organizadores do ato. Os pais e irmão do jovem estavam entre os manifestantes.

De acordo com uma das tias de Kaique, a autônoma Ana Cláudia Moreira, 39, o próprio jovem tinha comentado, em uma ocasião, sobre a vontade de doar os órgãos. Uma vez, enquanto dirigia, ao lado da mãe, Kaique foi repreendido por ela. Queria que o filho reduzisse a velocidade. Diante do pedido, ele disse que, se morresse, desejava que isso fosse feito. 

“Era um menino muito direito. Está sendo muito difícil, minha irmã (a mãe de Kaique) não consegue nem trabalhar direito, porque ele a ajudava na empresa da família. O único horário do dia em que ele não estava com ela era quando estava na aula”. 

Entidade  Os familiares pretendem ir além da manifestação deste domingo. Agora, segundo o tio do estudante, Kildere Abreu, a família pretende fundar o Instituto Kaique Abreu. “Queremos levar essa mensagem da doação de órgãos e da importância do socorro. A gente busca justiça pelo Kaique, mas por muitos outros”, diz. 

Ele ainda não sabe como será o formato da entidade – se funcionará como uma ONG, por exemplo. “Essa situação nos pegou de surpresa. Agora, estamos nos organizando e lidando com a burocracia para buscar o modelo mais adequado ao que queremos”, explicou. 

De acordo com outra tia de Kaique, a administradora Patrícia Moreira, o objetivo do instituto deve ser o de promover ações na comunidade relacionadas aos dois temas, além de pedir o fim da violência. “É o mesmo propósito que temos aqui hoje, para mobilizar a sociedade na busca por Justiça e incentivar a doação de órgãos”. 

Espera na fila Segundo a coordenadora da Central Estadual de Doação de Órgãos, Rita de Cássia Martins, é raro que uma família decida, de forma tão natural, pela doação de órgãos – especialmente em uma situação de violência. “Em 28 anos trabalhando na área, poucas vezes vi uma família agir com tanto desprendimento, mesmo que ele tenha sido arrancado. Foi algo que nos comoveu, nos tocou, por isso estamos aqui para apoiar a família”, explicou ela.  

Todas as cinco pessoas que receberam os órgãos moram na Bahia, embora o órgão não permita divulgar a identidade delas. As cinco realizaram a cirurgia no dia 16. O coração e os pulmões de Kaique não puderam ser doados – o coração porque o jovem sofreu uma parada cardíaca; os pulmões porque ele passou muitos dias respirando com auxílio de tubo. 

Além disso, a Bahia não tem realizado transplantes de coração. “A Bahia chegou a fazer um ou dois transplantes, mas estamos em fase de reestruturação”, explicou. Ela acredita que as cirurgias devem voltar a ser feitas no estado ainda em 2018. 

Atualmente, em toda a Bahia, 880 pessoas aguardam na fila por um novo rim – é o maior tempo de espera da lista, que pode chegar a dois anos. Outras seis pessoas esperam por um transplante de fígado, enquanto quatro estão na fila pelo transplante de pulmão. Há, ainda, 776 que esperam por uma nova córnea. 

No caso do transplante de córneas, o Banco de Olhos da Bahia pretende ‘zerar’ a fila de espera até o fim do ano. Em abril de 2017, mais de 1,2 mil aguardavam na fila. De lá para cá, desde o lançamento da campanha Rumo À Fila Zero de Córnea, o número foi reduzido em cerca de 40%.  

“Para nós, zerar significa que a espera vai ser reduzida para 30 dias. Hoje, está em um ano e dois meses. Isso é muito importante em um estado como a Bahia, que é um dos que mais tem negativa familiar”, explica a enfermeira do Banco de Olhos e coordenadora da campanha, Marli Nascimento. O índice de negativas para doação de órgãos no estado é de 62%.