Tenho cá pra mim que cães são anjos

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  • Kátia Borges

Publicado em 8 de dezembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Esta semana fomos levar as cinzas de Billy para jogar em um dos locais prediletos dele, o parque perto do mar onde costumávamos passear juntos. O crematório de animais envia aos tutores uma caixinha de madeira azul, personalizada com o nome. Dezesseis anos não cabem nela. O vento se encarregará do resto: espalhar todo o amor do mundo entre os dias que seguem. E então a ficha da perda cai com mais pesar. Mas esta não é uma crônica triste, caro leitor. Não deve.

Billy foi, acima de tudo, um cachorro muito alegre. E essa alegria permanece de algum modo. Paira no ar agora, enquanto escrevo sobre ele. E mesmo se encontro algo que restou de sua passagem: o pequeno travesseiro no qual apoiava a cabeça, já idoso, ao passear de carro ou a bolinha verde de borracha com que brincava na juventude. Aos poucos, desfaço o cenário montado em casa nos últimos meses. Há muitos remédios que serão doados, apetrechos que já não lhe servem, mas que podem servir a outros.

O essencial continua presente, a alegria por tantos anos, a esperança nos piores momentos. Seria indelicado com Nick dizer que Billy foi meu melhor cachorro. Vai que acabem se encontrando nos gramados do outro mundo? Nada de disputa, companheiros. Espíritas dizem que os cães não têm carma como os humanos. Não vieram resgatar coisa alguma. Em poucos meses, ganham novo corpo. Podem até voltar para seus tutores, filhotes aparentemente novos. Tenho cá pra mim que cães são anjos.

Quando chegou lá em casa, bem pequeno, Billy trouxe consigo a felicidade. Havíamos perdido meu pai há pouco tempo e minha mãe andava inconsolável. Não cresce, disse a moça que me entregou ele nos braços. Cresceu, sim, ficou enorme. Curioso

como poucos, porte imponente, aquele ar de arrogância próprio dos poodles. Mimado, andava pelas ruas como se fosse o dono. Arrumou bons inimigos ao marcar seus territórios. Fez grandes amigos entre animais também.

Sua capacidade de conquistar os outros, diga-se, superava o temperamento irritadiço. Certo dia o encontramos junto a uma arara enorme, ela coçava a cabeça dele como se fizesse carinho. Em outra ocasião, alugamos casa de veraneio. Havia uma galinha por ali, sabe-se lá vinda de onde. Billy passou a esperar por ela todos os dias, não arredava o pé da porta enquanto a penosa não passasse.

Foi nesses veraneios que conheceu o mar. Uma festa enorme, aquela novidade. Durante quase um mês, fizemos o ritual de acordar bem cedo e ir à praia juntos. Também amava andar de carro, como todo cachorro. E perdi a conta das vezes em que demos voltas a esmo pela cidade com ele. Era tão inteligente que, quando perdeu a visão, aprendeu a se guiar por minha voz. Bastava cantarolar uma canção o tempo suficiente.

Vez em quando me pego sorrindo ao pensar nele: no modo como costumava guardar os brinquedos prediletos dentro dos potes de comida e em como gostava de aproveitar ao máximo o tempo ao nosso lado. Quando foi ficando cada vez mais fraco, costumávamos carregá-lo para todo canto. Uma vez fomos de madrugada ao aeroporto, pegar uma amiga, e ela tomou um baita susto ao abrir a porta do carro.

É Quintana, acho que sim. É que, às vezes, eu gosto de esquecer o autor de um poema de propósito, deixar apenas que os seus versos fiquem ressoando livres dentro de mim, e é como se acomodasse aquilo que ele me faz sentir sem intermediários. Esse que lembro agora, bem agora, diz assim: “Só o que está perdido é nosso para sempre”.