Tensão na madrugada: o dia em que meu motorista da Uber estava drogado

Senta que lá vem...

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  • Vanessa Brunt

Publicado em 11 de junho de 2018 às 13:12

- Atualizado há um ano

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Entre as 3h e 5h da manhã, a madrugada de um sábado à noite parece lembrar uma cena turística de um final da tarde – daquelas dignas de novelas – para quem está pelos bares do Farol da Barra. Música, risos ecoando quase como um backing vocal das canções e muitas vozes conjuntas formulam um senso de aconchego, que chegam a lembrar um passeio por um bom shopping lotado.

"A gente nunca acha que vai acontecer com a gente". É dessa frase que esquecemos em momentos assim, enquanto a cerveja gelada descansa na mesa de madeira e a segurança parece certeira com os amigos ao redor.

A cerveja esquenta, o papo adormece e o cansaço bate na porta. Hora de ir embora. Tudo o que queremos é um banho, uma cama e uma ida tranquila para casa.

Ninguém para dominar um volante, já que todos ingeriram alguma bebida alcoólica. No meu caso, nenhuma das minhas companhias iria sequer de carro para casa. Todos que lá estavam, moram pela Barra mesmo, e resolveram ir em grupo, a pé. "Pede um Uber pra Vanessa, gente. Vamos aguardar ela entrar no carro e, depois, vamos andando". O tom de cuidado parece sensato e suficiente depois de uma noitada empolgante.

"5 estrelas, amiga", berraram próximas a mim, que estava com o celular descarregando. A tranquilidade ficou ainda mais ampliada enquanto nosso grupo de cinco pessoas se direcionava para longe dos burburinhos dos bares. Paramos embaixo de um poste, com alguns da turma quase fechando os olhos. "Há uns anos a gente aguentava até às 7h da manhã, não é?". Não mais. Agora, voltar às 4h e pouca era o que fazia mais sentido.

Em menos de 10 minutos, o carro cinza (porque não entendo de marcas) se aproximou em meio à rua vazia e parou na nossa frente. "É esse". Beijo pra cá e abraço pra lá, despedida feita – e entrei no veículo pronta para relaxar o corpo e desabar, logo após, no meu colchão.

"Boa noite", falei para o moço que iria me conduzir para casa. "Boa noite", respondeu ele em um tom educado e comum. Com essa única saudação, não era possível sentir a real conexão daquela voz, e jamais seria fácil de imaginar o que estaria por vir.

Recostei a cabeça no banco, quase pregando os cílios uns nos outros e, de repente, senti o carro fazer um movimento brusco para a esquerda. Todo o meu sono foi embora no exato segundo – em que arregalei os olhos imaginando uma futura batida. Diferente do que presumi, mas não tão distante do que cogitei, logo percebi que o carro estava formulando um zigue-zague no meio da rua que, ainda bem (para este momento), estava completamente deserta.

Olhei para o lado e visualizei o motorista caindo em cima do volante, fechando os olhos tanto quanto estava prestes a fechar os meus alguns instantes antes. "Moço!", alertei, em um tom desesperado.

"Vixe, foi mal". Foi a única coisa que ele disse. Logo após a frase, olhou para mim rapidamente como se desejasse frisar a afirmação. Foi o suficiente para que fosse possível notar seus olhos avermelhados e caídos. Drogas ou sono? Não importava. Ambos eram riscos absurdos para quem estava naquela posição que ele ocupava.

A minha vontade, no mesmo instante, era de pedir para que ele parasse a corrida e me deixasse sair ali mesmo, no meio do caminho. Mas não sabia se o perigo maior seria a rua escura ou o carro com uma condução incerta. Não adiantou sequer tentar medir as possibilidades, já que o segundo receio foi ainda maior: o daquele homem 'fora de si' se rebelar após o meu pedido de cancelamento e fazer algo terrível: como uma tentativa de estupro. Afinal, em uma situação dessas, que mulher não cogita tais terríveis opções?

"Tudo bem. Vamos conversando. Já estamos chegando", disse na tentativa de mantê-lo acordado e de sentir que algum comando poderia estar em minhas mãos. "Eita!", ele respondeu, enquanto conduzia o veículo em linha reta, mas ainda com certa instabilidade. "O que foi?", indaguei. "Tem um demônio nessa rua!", exclamou ele, parando o carro no meio do asfalto e apontando para o lado, para um passeio vazio que estava próximo.

"Não tem ninguém. Está tudo bem", tentei fazer ele esquecer o assunto e prosseguir. "Tem sim! Ó, ó!", continuava apontando, enquanto meu medo de um outro carro surgir aumentava, correndo o risco de uma colisão. As minhas mãos tremiam e já não sabia se aquilo era alguma desculpa para que ele arrastasse o carro para outra direção e tentasse algo, ou se era, de fato, o possível efeito de alguma droga.

Nesse momento, pensei em pegar o celular e ligar para alguma das pessoas que estavam comigo nos minutos anteriores, mas me toquei que não tinha nenhum código de alerta de perigo para utilizar. 'Porque não combinamos nada? Eu poderia falar, por exemplo, que esqueci a minha bolsa azul. Esse poderia ser o nosso código para eles saberem que estou em uma situação das piores. Nem tenho bolsa azul', meu cérebro pensou em mil e uma possibilidades em segundos.

Mas, e se ele dormisse de vez enquanto eu pegava o celular? E se meu celular acabasse a bateria no meio da ligação e ele tomasse da minha mão - e eu não tivesse mais como ligar pra alguém caso os fatos piorassem? Eram tantos os medos e, logo eu, que vou pela emoção na maior parte das minhas decisões, tentei ser o mais racional possível. "Ele já foi, não tem mais ninguém, só luz. Tá vendo? Olha a luz ali no poste. Tá tudo tranquilo. Podemos ir", fiz mais uma tentativa ao respondê-lo, instigando o olhar dele para outra direção.

"É?", retrucou, enquanto parou para olhar para o poste por alguns segundos. "Tá bom, vamos", disse ele, voltando a ligar o carro e, após, o conduzindo para a direção oposta àquela que seria a correta para o meu prédio. "Não é por aí, moço. Mas está tudo bem, viramos aqui, ó", tentei manter a voz serena e paciente.

Ele seguiu a minha instrução, mas ainda mantinha o corpo zonzo e o carro, idem. "Tô cansado, viu?", afirmou. "Tudo bem", parecia que era a única expressão que saía da minha boca. Mas é óbvio que não estava tudo bem. Meu corpo se espremia, querendo ficar o mais afastado possível, mas não tirava meus olhos dele, para estar ciente de cada movimento.

"Converse comigo. Daqui a pouco chegamos na minha casa e, daqui a pouco, você vai poder dormir tranquilo". 'Converse comigo? Por que eu disse isso? E se ele entender essa fala como uma abertura para algo semelhante a uma paquera?', dizia a minha mente logo depois da fala já dita.

Ele olhou para mim, diminuindo a velocidade, e já não desfixou os olhos como fez da primeira vez. "Nossa, mas cê é bonita, viu?", falou, enquanto aproximava o corpo. "Ah, brigada. Estamos chegando, tá pertinho", fugi pela culatra.

"Tá perto? Pensei que era mais longe. Tô vendo uns demônios, aí tô meio atrapalhado", voltou ele ao ponto que pensei que havia resolvido.

De longe, pareceria brincadeira. Mas, de perto, naquele deserto e em meio à escuridão, parecia o início ou o meio de uma trama de terror. Claramente, ele tinha usado alguma coisa. Ou, no mínimo, tinha algum tipo de deficiência. "Não tem nada aqui, tá tudo bem. Vou te guiando. Ó, direita agora", disse tentando manter o tom calmo, mas que agora já não estava tão seguro após o elogio que mais soou como uma ameaça.

"Tem namorado?", perguntou ele enquanto descíamos uma ladeira. Queria ficar calada, mas tinha medo do meu silêncio levá-lo ao sono ou à revolta. "Tenho", pontuei tentando ser firme, apesar de ter mentido – mas estando ciente de que um homem, na nossa sociedade, ainda respeita mais um outro homem do que uma mulher por si só (visualizando-a, bizarramente, como 'posse do outro'). "Tá chegando, é ali na frente", arrastei essa frase logo depois da minha resposta, antes que ele perguntasse mais alguma coisa.

Com o carro ainda mais lento, ele passou a dirigir olhando para frente e olhando para mim quase como em uma coreografia ensaiada. "Ó o portão ali. Viu? Tá tudo bem. Muito obrigada", fiz tom de encerramento, mas ainda com o temor guiando uma falsa educação.

Ele parou na portaria, e fui descendo o vidro do carro imediatamente. O porteiro estava acordado e atento, ainda bem. Mas o meu receio ainda não tinha passado. O medo só iria embora ao sair daquele carro.

"Quero ir ao banheiro", disse ele enquanto conduzia o veículo para dentro do condomínio. 'Por que não saí lá fora mesmo e vim a pé?', não sabia responder minha própria pergunta. "Aqui embaixo tem um, bem ali na área da piscina. O senhor pode ir tranquilamente". "Obrigado, moça bonita", respondeu ele retomando o elogio que fazia minha vontade de fugir enlouquecer.

A preocupação agora era de que ele me prendesse no banco, no meio do playground desocupado, ou de que pudesse me perseguir até o elevador, já que ele iria sair do carro também. Me arrependi na mesma hora de ter dado a opção para que ele continuasse por perto. "Quanto deu?", indaguei, abrindo a porta e colocando os pés para fora. "20 reais", afirmou. O preço é o dobro do que pago em um Uber da Barra para a minha casa, mas não iria discutir.

Dei o valor, de longe, já fora do veículo. "Boa noite", disse, lembrando de quando entrei no carro e não conversei um pouco mais logo no início do caminho (ou antes da corrida começar). Talvez, se eu tivesse feito perguntas logo nesse começo, pudesse ter sentido que algo estava errado com ele.

Ele retribuiu, enquanto abria a porta do próprio carro. Apressei o passo, mas tentei não correr. Entrei no hall do prédio e fiquei olhando para trás, receosa, mas ele foi na direção do banheiro (amém!). Fechei o elevador com mil teorias na cabeça, pensando que ele poderia dormir ali, no carro, no meu prédio, sabendo onde moro, e sabendo, talvez, até o meu andar.

Cheguei em casa pensando em como fazer a denúncia e, rapidamente, mandei uma mensagem para uma das amigas que estava comigo logo antes. "Estava com um Uber drogado. Esse que você pediu. Por favor, envia uma mensagem para a Uber. Precisamos denunciar". Mas ela já tinha dado 5 estrelas.

Exausta e levemente aliviada por estar em casa, tranquei a porta e me joguei para dentro do chuveiro, como se fosse limpar o medo que ainda estava fazendo a minha perna bambear.

Acordei no outro dia pensando em tomar alguma atitude, afinal, ele poderia estar daquele mesmo jeito, em outro lugar, e o final da história poderia ser pior para outra mulher. Precisava pegar a placa do carro ou qualquer informação. 'Quem sabe quantas outras corridas a mais ele fez naquela noite?', pensei.

Mas tinha afazeres planejados para o domingo e, como o pior não aconteceu, tomei a atitude egoísta de priorizar as outras obrigações do meu dia. E, assim, sucessivamente, mais dias foram passando. Agora, ele pode ser o morotista '5 estrelas' que vai buscar outra menina em uma noite de comemoração. Ele pode dormir no volante. Ele pode se aproximar mais depois de um elogio. Ele pode não tirar o carro parado do meio da rua.

 Ele pode ser vários outros, assim como eu sou todas elas.

Vanessa Brunt é estagiária do CORREIO.

Texto originalmente publicado no Facebook