Ter coração grande não é bom: doença de Chagas mata um baiano por dia

Taxa de mortalidade na Bahia é a quarta maior do país; entenda como é transmitida

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  • Fernanda Santana

Publicado em 24 de junho de 2018 às 07:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO
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Aconteceu aos poucos. O coração de Elísio de Jesus, 69, ficava cada vez maior e sinalizava com delicadeza o crescimento. Numa noite, há 14 anos, o aposentado sentiu pesar uma carga insuportável. O coração do pai e esposo cúmplice, contador de história e causos dos 69 anos de vida, já não cabia mais.

Coração de gigante pulsando no senhor de 1,62 m de altura. Acabou internado, à revelia de diagnósticos imprecisos. Pelo menos um mês de incerteza até a resposta definitiva: Elísio tem doença de Chagas. O coração havia crescido quase dois centímetros. O peito ficou pequeno de angústia. Hoje, em constante tratamento, ele brinca:“Me cuido direitinho, tenho medo de morrer”.Nem todos tiveram a sorte de viver, como Elísio, ao receberem o diagnóstico de Chagas. Na Bahia, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) calculou, a pedido do CORREIO: de 2014 a 2017, foram 1,69 mil vidas interrompidas pela doença, descoberta pela ciência em 1909. Os números colocam o estado na lista das maiores mortalidades no Brasil. Quando realizou o último levantamento, em 2015, o Ministério da Saúde concluiu que a Bahia havia registrado 3,80 mortes por 100 mil habitantes. Atrás apenas de Goiás (11,50), Distrito Federal (6,55) e Minas Gerais (5,35). Por isso a brincadeira e o cuidado de Elísio.

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Dificuldades de dianostico e tratamento e a metologia de levantamento dos casos ainda sombreiam a realidade dos portadores do protozoário Trypanosoma Cruzi, causador de Chagas. No dia 14 de abril, data mundial da doença, a organização não-governamental Médico Sem Fronteiras lançou campanha para revelar dificuldades ainda enfrentadas por pessoas como Elísio. A grande dificuldade, comenta Vitória Ramos, analista em assuntos humanitários do MSF, é oferecer diagnóstico a moradores de áreas rurais. O diagnóstico é realizado por meio de um teste sorológico para confirmar ou não a presença do protozoário na corrente sanguínea. Nas regiões afastados, muitos nem chegam a procurar um médico infectologista.

Ela acrescenta: “Também é um problema o fato de que somente a fase aguda da doença é registrada. Os outros casos nem são contabilizados”. Uma das lutas da organização é pressionar o Ministério da Saúde a tornar a notificação das outras fases da doença compulsória. Na Bahia, foram 112 internações provocadas pela Doença de Chagas. São três variações da mesma patologia, explica o médico Claudilson Bastos, infectologista e membro do núcleo de epidemiologia do Hospital Geral Roberto Santos. “A fase aguda é a fase inicial, o protozoário está em fase de incubação e o indivíduo apresenta ou não sintomas [...] Já a fase crônica é a evolução da fase aguda, pode significar que a pessoa já é portadora do Trypanossoma por longos anos. Existe também a fase de reativação, quando o protozoário volta a atuar: ocorre principalmente com os pacientes que têm os vírus da Aids”.A contaminação também ocorre de maneiras variadas. A principal delas é por meio do inseto barbeiro, cientificamente chamado Triatoma Infestans, explica Claudilson Bastos. O animal transmite a doença, na maioria das vezes, ao picar o alvo e defecar em cima da pele. O protozoário segue, então, para a corrente sanguínea da pessoa atingida e, depois, para um órgão do corpo. O preferido é o coração, onde o protozoário inicia um processo inflamatório que causa o crescimento do órgão. “Mas também há casos em que o intestino é afetado, o esôfago e outros órgãos”.

Há, ainda, contaminações provocadas por via oral e, mais raramente, congênita (da mãe para o filho). Aqui, o médico Roque Aras, coordenador do ambulatório que trata a doença no Hospital das Clínicas, sinaliza: comer açaí e tomar caldo de cana podem transmitir a doença. O barbeiro pode ser triturado junto ao grão e à cana de açúcar, se não houver a higiene devida na produção. “Tratados industrialmente, no entanto, é muito difícil que eles ainda tenham capacidade de transmitir a doença”, diz.

A Chagas se alojou na vida e coração de Eloísio pela boca. Tudo começa num bar em Paripe, Subúrbio Ferroviário de Salvador, à frente de um prato de sariguê. 

O coração grande de Seu Elísio e Dona Maria Geralmente aos sábados e domingos, dias de poucas horas extras no serviço para uma empresa fabricante de materiais pesados como canhões e metralhadores, parava no bairro de Paripe para tomar uma cachacinha. No prato, ao menos duas vezes no mês, estavam pedaços de sariguê, nome abaianado do Gambá e prato igualmente típico e controverso da culinária nordestina. Não sabia, continuava a comer. Numa dessas horas de lazer, comeu a carne de um animal infectado e contraiu Chagas. 

Nem imaginava Seu Eloísio e os amigos o perigo que levavam à boca. O entomologista e professor de Parasitologia Artur Dias Lima explica que justo os sariguês são um dos principais reservatórios do Tripanossoma Cruzi.“Esse protozoário vive em sete ordens de mamíferos: como os sariguês e os catus. Os barbeiros sugam o sangue desses animais e podem, aí, adquirir o protozoário e transmiti-lo”, conta. Agora, Seu Elísio compreende como adquiriu a doença. Adota um tom brincalhão: “Não é que o dono do bar onde a gente comia morreu? Na época não disseram o que foi, mas deve ter sido pelo tanto de bicho que ele comia”. Mas as complicações na vida do aposentado são reais. Diariamente, toma de cinco a seis remédios. Entre eles, um broncodilatador para tratar a insuficiência nas válvulas cardíacas, complicação causada pela doença. Variados medicamentos constam na cartilha médica de qualquer paciente de Chagas.

É também o caso de Maria das Neves, 63. São cinco remédios por dia na rotina da ex-empregada doméstica. A infância de pés descalços e pouca ou nenhuma condição em uma casa de Taipa em Mata de São João reservariam, no futuro, dias de agonia. A aposentada nunca chegou a ver um barbeiro, mas, certamente ali, foi picada pelo inseto. O coração começou a crescer sem que lhe ocorresse nenhum sintoma. Apenas depois dos 60, começou a sentir arritmias, batimentos descompassados no peito.

A demora para receber o diagnóstico costuma ser comum entre os pacientes de Chagas. Mas pode, sim, haver cura. Na fase aguda, principalmente, é possível eliminar o protozoário com uso do principal é o Benzonidazol. O médico Claudilson Bastos é quem esclarece e complementa: “O tempo para que os sintomas se manifestem varia. Por isso, é importante o médico estar atento, buscar esclarecimento epidemiológicos. Ou seja: onde ele nasceu, onde ele cresceu, como é a casa, se tem pessoas com a doença de chagas na família. São questões que ajudam a não ficar somente na situação clínica”.A situação de Dona Maria foi esclarecida por perguntas como as citadas pelo médico. Hoje, o quatro clínico está tranquilo, segundo a própria aposentada. Vive normalmente com o filho, em uma casa melhor que a da infância pobre. Quando precisa, vai ao Hospital de Mata de São João. Se houver necessidade, virá a a Salvador, onde funciona o único ambulatório destinado especificamente para o tratamento de Chagas, o do Hospital das Clínicas. 

A saga da Doença de Chagas na Bahia 

Seu Eloísio também cresceu em casa de Taipa, feita de barro e sustentações de madeira. Nasceu no distrito de Matinha, Feira de Santana, centro-norte da Bahia, de onde saiu apenas em 1971, para trabalhar na capital baiana. A região de Eloísio é a campeão na taxa de mortalidade por Chagas na Bahia. Em 2013, o índice chegou a 10,7 por 100 mil habitantes; no ano passado, a quantidade ficou em 6,7 pela mesma quantidade populacional. 

A maior taxa é registrada na pequena Várzea do Poço, com 9,4 mil habitantes e 5,3 mortes a cada 10 mil habitantes, segundo cálculo feito pelo CORREIO com base em dados da Sesab. A seca do solo castigado pelo sol e a pobreza das moradias improvisadas atraem os indesejados barbeiros. O entomologista Artur Dias Limas, professor da Baiana de Medicina e da Universidade Estadual da Bahia, detalha os locais favoritos dos insetos. As preferências, obviamente, dependem do tipo de espécie. E são 130 espécies registradas; 25 na Bahia. “Os barbeiros conseguem viver nos buracos formados nas casas de barro. Uma coisa importante: os barbeiros são atraídos pela luz artificial. Quando a gente acende a luz o que a barata faz: corre. O barbeiro é o contrário. A sugestão é, além de evitar esses locais, pintar as paredes de clores claras para que se note a presença do inseto”. Na cidade de Itaberaba, para onde foram 156 dos 747 caixas de Benznidazol entre 2013 a 2017, a luta consiste em prevenir os casos pela melhoria na infraestrutura da zona rural. Um golpe direto contra o inseto. Em abril, a cidade da messoregião centro-norte e no perímetro da Chapada Diamantina, foi contemplada por um edital da Funasa Nacional de Saúde (Funasa). Por meio das ações de Implantação de Melhorias Habitacionais para Controle da Doença de Chagas (MHCDCh), devem ser construídas 25 casas no valor de R$ 40 mil cada, contou o coordenador do setor Epidemiológico de Itaberaba, Van Macedo. 

O projeto ainda não saiu do papel, os contemplados também não foram escolhidos. O clima é de mudança. Os barbeiros, enquanto isso, deverão buscar locais seguros para amedrontar as futuras vítimas. Mas, todos estão unidos por uma batalha comum: reduzir ao mínimo o poder do barbeiro e da Doença de Chagas. Seu Eloísio e Dona Maria querem o respiro da tranquilidade para todos. E que sejam os últimos dias dos corações inchados pelo mal. 

*com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier e da editora Mariana Rios