Terrenos invadidos no Litoral Norte são vendidos de R$ 5 mil a R$ 40 mil na internet

Justiça ordenou retirada de 300 casas em APA; Aldeia Hippie está ameaçada

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 6 de maio de 2018 às 03:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: CORREIO

Quanto custa o sonho da casa de praia? Bem, a casa não sabemos, mas o terreno... Se você não estiver preocupado com a documentação, um lote pode ser garantido em promoções imperdíveis. Até mesmo em sites de vendas como OLX e Mercado Livre, um imóvel em Arembepe, pertinho da praia, é encontrado por bagatelas que vão de R$ 5 mil a R$ 40 mil. 

"É uma invasão... O pessoal invadiu aqui, eu peguei um terreno para mim e quero passar ele adiante, entendeu? Tô querendo R$ 10 mil, mas a gente negocia aí, se tiver uma moto ou um carro..." 

A declaração acima foi gravada pelo CORREIO em uma ligação telefônica. Ao se passar como comprador dos lotes, nossa equipe de reportagem confirmou denúncias de que terras estão sendo sistematicamente invadidas pela especulação imobiliária clandestina, que repassa os terrenos a preços atraentes. Em uma das ligações, o próprio vendedor admitiu ter invadido a terra, instalada em plena Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Capivara. 

Conhecida como Vila Sangradouro, a invasão ameaça principalmente o meio ambiente, mas também um dos eldorados dos anos 70. "É pertinho da praia. Perto da Aldeia Hippie. Sabe onde é a Aldeia Hippie, né?" Vista aérea da Vila Sangradouro; ao fundo, à beira-mar, a localidade de Arembepe (Foto: Leitor CORREIO) Nos últimos anos, o Sangradouro avançou de forma exponencial sobre boa parte da APA e até ocupou lagoas e as próprias margens do Capivara. Em 2002, quando a invasão teria iniciado, 14 imóveis ocupavam a região. De lá para cá, ninguém - nem o município de Camaçari nem os órgãos de fiscalização do estado - foram capazes de estancar o Sangradouro. 

Atualmente, segundo processo judicial que correu na 1ª Vara da Fazenda Pública de Camaçari, mais de 300 construções irregulares foram edificadas no Sangradouro, que já devastou uma área de 205.932,00 metros quadrados ou 20 hectares (o equivalente a 27 campos de futebol). Isso fora os terrenos invadidos e demarcados por desmatamentos e queimadas, que ocorrem quase que diariamente.

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Em abril de 2017, após ação civil pública movida pelo Ministério Público (MP-BA) para retirada dos invasores, iniciada em 2002, o juiz César Augusto Borges de Andrade julgou procedentes os pedidos do MP-BA e condenou a Prefeitura de Camaçari e dois proprietários de parte das terras do Sangradouro a retirar as mais de 300 casas construídas, além de remover materiais de construção que se espalham pela área. A sentença estipulava prazo de 90 dias para o cumprimento da decisão. 

A Associação Nova Esperança do Sangradouro, que representa os invasores, chegou a apelar da sentença. Em fevereiro desse ano, o Tribunal de Justiça reformou a decisão, mas manteve o pedido de retirada das casas. Observou, porém, que a Prefeitura desse a devida destinação aos moradores de baixa renda que utilizam os imóveis como moradia. O novo relatório não estipula prazo.

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Tudo deverá ser feito de acordo com normas ambientais. Inclusive, os réus foram condenados também a promoverem “a recuperação integral da área degradada pelos referidos ocupantes, de acordo com a coordenação das medidas compensatórias a serem definidas pelo órgão técnico ambiental do Ministério Público do Estado da Bahia”, escreveu o relator do processo em segunda instância, desembargador Salomão Rezedá.

O Sangradouro seria apenas o caso mais absurdo envolvendo invasões no Litoral Norte, que nas últimas décadas tem sofrido com o loteamento clandestino sistemático de suas terras. Em novembro de 2016, o CORREIO denunciou o problema. Na época, a promotoria de Meio Ambiente e Urbanismo do Ministério Público calculava a existência de 40 invasões em Camaçari, que somariam um total de 5 milhões de metros quadrados. A APA tem, ao todo, 18 milhões de m². “A situação se manteve”, afirma o promotor Luciano Pitta.“Como eu disse naquela época, a maioria das invasões se dá em áreas valorizadas, com forte especulação imobiliária. Uma especulação que não é só de empresários e construtoras, mas de clandestinos. A maioria está longe de ser gente de baixa renda”, explica Pitta.“Claro, há um conflito de direitos, já que além do direito ao meio ambiente equilibrado, também há o direito à moradia para algumas pessoas. Cabe à prefeitura saber quem é quem ali dentro”.   Promotor Luciano Pitta denunciou invasores e tem cobrado providências de prefeitura (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) Veraneio Mas, na própria decisão do juiz, ele afirma que “aproximadamente setenta por cento dos imóveis não encontram-se ocupados de forma contínua pelos respectivos ocupantes”, o que reforçaria a ideia de que a maioria dos invasores não utiliza as casas como moradias, mas como local de veraneio. Mais recentemente, com o avanço das invasões, os ambientalistas e nativos da região tentam se organizar para combater os invasores. 

No dia 14 de abril, eles realizaram uma manifestação reunindo ativistas, moradores e comerciantes. “É um crime ambiental sem precedentes no Litoral Norte. Logo depois de praticar queimadas e invadir os terrenos, os invasores cercam os lotes para vender ou construir”, afirma a ambientalista Fabiana Franco, da Ong Coqueiro Solidário.“Basta! Arembepe não aguenta mais esses grileiros”, diz Fabiana.Ela garante sofrer ameaças dos invasores, que nos seus cálculos já são mais de 400 e não apenas 300 como está na decisão judicial. 

Gatos para tudo Apesar dos alertas de que o Sangradouro se trata de área perigosa, com atuação de milícias, influência de agentes públicos e até de políticos e policiais, o CORREIO entrou no local e flagrou diversas irregularidades. Além das centenas de imóveis utilizando gatos de água, luz, antenas de TV a cabo e até Internet, confirmamos que boa parte dos imóveis têm boa estrutura, alguns com carros na garagem e até piscina.  Ligações de energia clandestinas são usadas por moradores (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) “Tem gente que cobra R$ 50, R$ 100 para fazer os gatos. Até nisso tem gente que ganha dinheiro. Os caras invadem e vendem os lotes muito baratos. Imagine, em um paraíso como esse tem terreno sendo vendido por R$ 5 mil, R$ 10 mil”, lamentou um dos moradores de Arembepe, vizinho ao Sangradouro, que preferiu não ser identificado.

O CORREIO também confirmou, porém, que realmente há entre os invasores gente em situação de vulnerabilidade social. Leonora dos Santos, 53 anos, mãe de quatro filhos, diz que a casa que construiu no Sangradouro é sua única moradia e espera que a decisão judicial possa lhe beneficiar. “Nós não queremos ser clandestinos, queremos pagar água e luz. Se for para tirar a gente daqui, que tire. Mas que nos dê onde morar”, afirmou.   Moradora do local, Leonora dos Santos, 53, mãe de quatro filhos, aceita deixar local se prefeitura lhe der abrigo (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) A associação dos moradores, por sua vez, sai em defesa de todos que estão lá dentro. “Não é o nosso papel diferenciar A ou B. Não é nosso papel dizer que fulano é pobre e cicrano é rico. Somos representantes de todos”, disse Marli Aguiar, presidente da associação, que, apesar de tudo, comemora a sentença reformada pelo TJ. “Não queríamos sair daqui, mas a sentença garante a nossa relocação”, diz Marli.Já o Ministério Público teve sua denúncia aceita parcialmente.“Bom, pelo menos o meio ambiente será restaurado. Agora, veja... chegamos ao cúmulo de ver invasores formarem uma associação para recorrer de uma decisão judicial. Imagine”, ironiza o promotor.Sobre os gatos de água, a Embasa informou, através de nota, que tem ciência e já realizou operações conjuntas com a prefeitura de Camaçari para a retirada das ligações clandestinas do local, “sem resultados permanentes pois os moradores refazem as ligações irregulares”. Na mesma linha, a Coelba informou que o problema é recorrente. Mesmo com placa  que indica se tratar de uma Área de Proteção Ambiental (APA), local é tomado por dezenas de imóveis (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) Danos irreversíveis De acordo com o Plano Diretor de Camaçari, na APA do Rio Capivara – instituída por lei em 1992 – é proibido o parcelamento do solo e a implantação de empreendimentos. Mais ainda onde se localiza o Sangradouro, uma Área de Preservação Permanente (APP) dentro da APA do Capivara. Independente das razões de cada lado do processo, o estrago está feito, ainda que haja um trabalho de restauração ambiental. 

Isso porque o Sangradouro foi construído em uma área de brejos e dunas com vegetação nativa. A própria sentença do juiz afirma que a APP já se encontra reduzida “e que os danos ambientais pela ocupação irregular podem ser irreversíveis”. “As APPs são áreas em que não se pode edificar. São dunas de areias, margens de rios, córregos e lagoas. É o caso do Sangradouro”, explica o promotor. 

Além de ser o mais absurdo do Litoral Norte, o caso do Sangradouro é o mais complexo. Isso porque a invasão da APA se iniciou com supostas doações feitas por Ortiz Coelho Pinto e seu irmão Lydio Coelho, proprietários das terras que hoje são apenas uma pequena parte da grande vila. Estes teriam loteado os terrenos de forma irregular e vendido para 14 famílias, os chamados compradores de boa-fé. Além desses, outras quatro famílias moravam ali há mais de 40 anos, antes mesmo de as terras serem vendidas.

“Aqui só tem quatro famílias que têm o direito. As outras 14 caíram na mão de Ortiz. O resto, mais de 70%, pegou carona nessa história toda para invadir. E a associação está na mão desses invasores”, afirma Alan Franco, nativo de Arembepe que mora no Sangradouro com uma das quatro famílias que deram início à área.  

“A ganância de Ortiz foi grande. Ele sabia que não podia vender essas terras para construir de qualquer jeito. Há muitas restrições para construir ali”, afirma o ambientalista Reginaldo Martins, da Coqueiro Solidário.“Ele vendeu aquilo ali sem sequer pedir autorização à prefeitura. Ele sabia que não ia ser autorizado. Ele quis lucrar”, acusa.  Segundo os próprios moradores de Arembepe, Ortiz Coelho teria morrido no último mês. Seu irmão, Lydio, morreu há muitos anos. O CORREIO tentou entrar em contato com familiares, mas eles não foram localizados. Para além dos compradores das terras de Ortiz, que já estariam descumprindo leis ambientais, o Sangradouro cresceu de forma desordenada, inclusive em direção as margens do Capivara e das lagoas. Por isso, hoje, é uma invasão devastadora.

Enquanto a determinação judicial não é cumprida, os lotes continuam sendo comercializados e as queimadas ocorrem dia após dia. O vendedor de terrenos que atendeu nossa ligação disse que esse é o segundo terreno que invade. No outro, construiu uma casa. Pelos cálculos dele, o número de imóveis do Sangradouro já chega a quase 2 mil."Gastei quase R$ 40 mil na minha casa já. Tem umas 2 mil pessoas lá. Todo mundo paga advogado todo mês", afirma ele.Clima tenso: manifestação de ambientalistas desafia ‘gafanhotos’ O nome “gafanhoto”, nos cartazes e banners espalhados por ambientalistas em Arembepe e nas redes sociais, faz referência aos chamados grileiros. Para grupos ambientais como a Coqueiro Solidário, entre outros, os invasores não passam de especuladores que invadem terras nas APAs para revender ou construir suas casas de praia. “Fora gafanhotos!”, “Basta de invasões de terras em Arembepe!”, “Invasor, você vai pagar por cada metro invadido!”, são alguns dos recados que constam nos cartazes. Manifestação contra invasores no mês passado reuniu dezenas de pessoas (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) Armados com 200 mudas de árvores nativas, no dia 14 de maio, os ambientalistas fizeram o plantio das árvores em áreas de queimadas próximas ao Sangradouro. “Queríamos plantar lá dentro do loteamento, mas fomos desaconselhados. O risco é grande”, disse um dos manifestantes, reiterando o clima de tensão. Os ambientalistas insistem que parte dos que construíram suas casas no Sangradouro é formada por agentes públicos e até por policiais. 

A presença desses grileiros teria contribuído para o aumento da violência local. “Desde que o Sangradouro se consolidou, é sensível o aumento da violência em Arembepe. Sem falar nas muitas queimadas e destruição da fauna e flora”, afirma Reginaldo Martins.

Os moradores da Aldeia Hippie se juntam aos ambientalistas. “Aqui é Aldeia Hippie! Fora invasores!”, escreveram nas dunas a lado da aldeia. “É difícil ver essas queimadas ostensivas. No lugar de árvores nativas seculares existem casas suntuosas. Casas até com piscina. Uma tragédia”, afirma a professora Graça Raimunda, 66 anos, moradora da Aldeia Hippie. Imagens divulgadas por movimento em prol da preservação ambiental que pede a retirada de invasores (Foto: Reprodução) Inema cobra município e prefeitura diz que solução sai em 90 dias A omissão dos órgãos públicos é apontada por moradores, ambientalistas e até pelos próprios invasores como a principal causa da confusão que se estabeleceu em Arembepe. Aliás, a Justiça também responsabilizou o poder público, tanto que o condenou no processo. “Em que pese as promessas feitas pelo Município para estancar as ocupações e promover as ações de infraestrutura e fiscalização, nada de efetivo foi feito e o número de ocupantes cresceu de forma exponencial”.

Diante disso, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Sedur) de Camaçari disse que vai tomar providências. O município, aliás, informou que já realizou diversas operações em conjunto com outros órgãos para a retirada dos invasores, mas os mesmos insistem em retornar.“É um problema crônico, antigo. Essa gestão vai priorizar essa questão e em 90 dias vamos dar uma resposta”, garantiu a secretária Silvia Carreira, recém empossada no cargo.Fizemos ligações e enviamos mensagens para a antiga titular da pasta, Juliana Paiva, mas não obtivemos resposta.   Secretária recém-empossada, Silvia Carreira promete providências (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) Órgão de fiscalização do estado, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) informou que tem realizado inspeções no Sangradouro desde que constatou, em agosto de 2016, o avanço das invasões. O Inema diz que notificou diversas vezes a prefeitura de Camaçari. Provocado pelo CORREIO, voltou ao local no último dia 18 e, durante a inspeção, “foi verificado que a área em questão, caracterizada como Zona de Vida Silvestre (ZVS) vem sofrendo pressão antrópica com ocupação irregular. 

Segundo o Inema, foram constatados desmatamentos da vegetação nativa, queimadas, parcelamento do solo (com placas identificando responsáveis inclusive com nomes e contato telefônico), além da construção de barracos e fundações inacabadas de casas e muros de alvenaria ao longo do terreno”. Órgão reforçou a necessidade de a prefeitura tomar as medidas cabíveis “visando minimizar os danos e garantir a recuperação da área impactada”.

Litoral Norte sofre com pelo menos 40 invasões em APAs O número contabilizado pelo Ministério Público no final de 2016 pelo visto ainda condiz com a realidade atual. Pelo que a promotoria de Meio Ambiente calculava à época, havia 40 invasões só nas áreas de preservação ambiental do município de Camaçari, que somariam um total de 5 milhões de metros quadrados invadidos."Se vocês forem denunciar todo o contexto de invasões em Camaçari vão fazer reportagem por um ano", afirma Fernanda Manhente, da subseção de meio ambiente da OAB no município.Segundo os ambientalistas de Arempebe, somente nos arredores da localidade há pelo menos cinco invasões, a maioria de especuladores clandestinos. Mas, entre elas, também existiriam invasões do “colarinho branco”, feita por gente endinheirada que toma para si áreas paradisíacas. Casas continuam a ser erguidas no local, mesmo após decisão da Justiça (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) Em Arembepe, a ambientalista Fabiana Franco, da ong Coqueiro Solidário, cita invasões nas regiões do Piruí, Caraúna, Caetana, Rancho Alegre e Parque Verde. “É uma praga, um câncer. As invasões no Litoral Norte são uma patologia”, resume Fabiana. Fora dali, dizem os ambientalistas, também há diversas invasões.

Durante a manifestação em Arembepe, vários ativistas de outras localidades procuraram o CORREIO para denunciar invasores em regiões como nas dunas de Abrantes, por exemplo. “A situação lá está crítica. Estão construindo ilegalmente em cima das dunas”, denunciou um líder comunitário. “A indústria da invasão hoje em Camaçari é fortíssima. Agentes públicos e gente poderosa costuma estar envolvida. Quando a invasão se estabelece, ainda entram os políticos em busca de votos”, afirma Reginaldo Martins.