Tia Má: 'Mulher preta e pobre, quando tenho muita opinião, associam como barraqueira'

Jornalista fala sobre racismo, abuso e autoestima em livro que será lançado nesta terça (10); veja entrevista

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  • Laura Fernades

Publicado em 8 de março de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Magali Moraes/Divulgação

“Tenho medo do racismo, tenho medo do machismo, mas não tenho medo de me expor”, diz a jornalista e humorista Maíra Azevedo, 39 anos, segura de si. Tia Má, como ficou conhecida, é verborrágica mesmo com a sociedade taxando mulheres como ela de “agressiva, problemática e barraqueira”.

Em entrevista ao CORREIO, a jornalista fala sobre preconceito, excesso de exposição, elogios na transmissão do Carnaval, fake news e relacionamentos abusivos, tema de seu novo livro Como se Livrar de um Relacionamento Ordinário (Agir | R$ 34,90 | 144 páginas).

Além da obra, que será lançada nesta terça-feira (10), às 19h, na Livraria Leitura do Shopping Bela Vista, Tia Má fala sobre autoestima e sobre ser “preta e gorda”. “Sempre entendi que a forma como me posiciono, meu caráter, sempre foi algo mais atraente que meu par de bunda que também é lindo”, gargalha. Confira.

Seu livro aborda o universo das relações abusivas, dos “serial killers afetivos”, como você define. Por que jogar luz sobre o tema ajuda o bem-estar feminino?  Acho muito importante a gente falar sobre essas situações, porque muitos comportamentos abusivos já foram naturalizados e a gente não se dá conta de que está vivenciando uma relação tóxica. Falar sobre isso faz com que a gente se identifique e comece a combater, a se afastar desse universo tão perverso que aniquila a vida amorosa de várias mulheres. (Foto: Magali Moraes/Divulgação) Há quem critique o livro de autoajuda. O que diria a essas pessoas? Seu livro se enquadra nessa prateleira? Defendo a crítica, devemos externar nossas opiniões, nossos posicionamentos. Mas costumo dizer que esse não é um livro de autoajuda, é um livro de troca de conhecimento. Estou falando de relações que eu vivenciei. Percebi o quanto elas foram dolorosas e quero que as pessoas se reconheçam nelas para que não continuem passando por isso. É aquela coisa de oferecer o exemplo para que a pessoa perceba que aquilo é negativo. Para evitar que mais mulheres passem por situações afetivas dolorosas pelas quais eu passei por acreditar que ter alguém ao meu lado seria minha única forma de ser feliz.

Logo no início do livro, Maju Coutinho faz o alerta: “agressão vai além do tapa, do puxão de orelha, do empurrão; existe também o espancamento emocional”. Por que é importante bater nessa tecla? É muito importante falar que a violência é para além da agressão física, porque tem mulheres que são pressionadas por seus parceiros e não se dão conta. É o famoso “ele nunca me bateu, mas me impediu que eu saísse”, “ele nunca me bateu, mas não permitiu que eu tivesse amigos”, “nunca deixou eu cortar meu cabelo”. São essas pequenas violências que, na verdade, são grandes violências dentro da nossa afetividade, da nossa vida, e que deixam marcas profundas. Tem mulheres que depois não conseguem seguir em frente, porque foram ceifadas o tempo todo por seus companheiros.

Em outro trecho, você fala que foi uma mulher muito abalada por relacionamentos ordinários. Qual foi a dor que mais te marcou? Por quê? Vivi vários relacionamentos e em muitos deles eu percebi o quanto foi doloroso pra mim. Uma coisa que falo, inclusive no livro, é que cada relação serviu de aprendizado para que eu não repetisse aquele mesmo erro. Em todas as vezes que eu errei, foi de uma nova forma. Com o tempo a gente vai entendendo que até aquilo de ruim aconteceu pra que a gente aprendesse e não passasse mais por isso. Isso não quer dizer que estou curada e não vá passar novamente por uma relação destrutiva, abusiva. Mas não quero passar por nenhuma daquelas pelas quais já passei.

Você sempre foi verborrágica e nunca se intimidou com quem a taxa de “mulher reclamona”. Como enfrenta esse estigma? Sou verborrágica, né? E, sim, eu me intimido com essa coisa de falar demais. Sou uma mulher preta, pobre e quando a gente tem muita opinião, se expressa muito, as pessoas associam a gente como uma mulher agressiva, problemática, barraqueira. São adjetivos comumente utilizados para mulheres como eu. As pessoas gostam daquela mulher que fica caladinha, que aceita tudo e que não expressa, na real, os seus desejos, as suas vontades. Fui entendendo que eu tinha que falar tudo o que pensava, até mesmo pelo modelo de criação que recebi. Tive um pai que sempre me ensinou que os homens eram machistas e dizia “não aceite qualquer coisa de homem”. E tenho uma mãe que até hoje não se submete a várias coisas. Tenho muito orgulho dela, é minha maior referência. (Foto: Magali Moraes/Divulgação) Como enfrenta o preconceito enraizado na sociedade? A gente enfrenta o preconceito reescrevendo a nossa história. Falando o que a gente pensa, se colocando, se posicionando. Porque, muitas vezes, a gente pode não mudar de automático, mas cada vez que a gente ocupa um espaço, expõe nossa forma de pensar, a gente colabora para que outras mulheres se sintam representadas e passem a pensar dessa forma também. Então é isso que venho tentando fazer, estimular que outras mulheres não se submetam mais a nenhum tipo de relação opressora, seja no trabalho, seja no afeto, seja nas relações de amizade.

No livro, você diz: “Eu e as demais meninas negras sempre fomos preteridas nas disputas amorosas”. A solidão da mulher negra é uma realidade que tem a devida atenção? Por quê? A solidão da mulher negra não se resume à questão afetiva. As mulheres negras estão ficando sozinhas tanto amorosamente, quanto no espaço de trabalho e na forma de chefiar as famílias. Cada vez mais nós estamos ocupando os espaços e não encontramos outras iguais à gente, para que possa pelo menos dialogar a respeito. Acho que, cada vez mais a solidão da mulher negra vem se tornando pauta em vários espaços, mas muita gente tenta minimizar. Toda discussão que tem um recorte racial, tentam minimizar, desqualificar e depreciar. Isso é uma das vertentes do preconceito. Não aceitam que a gente fale das questões femininas e das questões de raça, nesse país. Então, nós mulheres, temos que estar o tempo todo lutando contra o machismo e contra o racismo, porque é isso que nos mata aos montes. Somos nós o alvo preferencial das mais diversas formas de violência.Nós mulheres, temos que estar o tempo todo lutando contra o machismo e contra o racismo, porque é isso que nos mata aos montes. Somos nós o alvo preferencial das mais diversas formas de violência.Você também cita a pressão da indústria da beleza. Como se descreve e por que seu corpo incomoda? Claro que meu corpo incomoda, mas eu me descrevo como uma mulher preta, gorda e se alguém me perguntar se sou feliz com meu corpo, eu vou dizer que eu sou. Mas não posso dizer que essa indústria, essa pressão estética não recaia sobre mim. É claro que em alguns momentos já me vi questionando a forma que meu corpo tem. Mas posso também dizer que nesse ponto aí sempre fui uma exceção. Mesmo sendo baixinha, gorda, isso pra mim nunca foi uma questão na hora de encontrar meus relacionamentos. Por isso que acho que o mais engraçado é ter uma mulher com uma cara como a minha falando de autoestima. Sempre entendi que a forma como me posiciono, o meu caráter, a minha personalidade sempre foi algo muito mais atraente que meu par de bunda que também é lindo (risos).Sempre entendi que a forma como me posiciono, o meu caráter, a minha personalidade sempre foi algo muito mais atraente que meu par de bunda que também é lindo (risos).Você demorou a se aceitar? Quando a chave virou? Pode parecer clichê, mas não tive essa coisa de me aceitar, não. Sempre soube quem eu era. Nunca estive dentro do padrão de beleza, então não tinha muita opção. Mas, volto a repetir: claro que a pressão estética recai sobre mim e tem dia que me questiono “será que não deveria emagrecer?”, “será que não deveria colocar outro tipo de roupa?”. Me questiono porque faço parte da sociedade, não sou uma pessoa à parte. Mas não tive essa coisa de ter que me aceitar. Sempre gostei de mim, sempre fui ‘ok’ com minha beleza. Sempre me achei, inclusive, muito da gatinha, muito organizada, direitinha. Então essa coisa de chave virar não rolou comigo. Nunca tive essa coisa de me achar feia, não, também nunca me achei a mais gata do mundo. Sempre me achei ‘ok’.

Durante a transmissão do Carnaval, você colecionou elogios de pessoas como Ivete, que falou sobre sua importância para a sociedade. O que acha disso? Essa coisa das pessoas falarem sobre a minha importância para a sociedade é lógico que é um combustível, você se sente estimulada a seguir em frente, mas é também uma armadilha para que você permita - se não tomar cuidado - que o ego tome conta. E a gente não tem nem esse direito. É o que digo todos os dias em meus vídeos: é preciso tirar todos os dias o meu sapatinho e botar meu pé no chão, porque sei que esperam de mim a qualquer momento um erro, um deslize. Então, tenho que estar o tempo todo atenta às minhas posturas para que não cometa nenhum equívoco, porque pessoas como eu não podem errar. Não tenho o direito de errar. Então, tenho que ser muito cautelosa. Cada vez que sou exposta, que alguém me elogia, preciso ficar muito mais atenta, muito mais criteriosa na hora de me posicionar.

Você se expõe bastante em todos os meios de comunicação, incluindo a TV. Tem medo das consequências de se expressar sobre temas espinhosos? Eu tenho medo do racismo, eu tenho medo do machismo, não tenho medo de me expor. Falar o que eu penso, ter meus posicionamentos é, inclusive, um instrumento necessário para que eu siga lutando. Tenho medo de viver em uma sociedade tão desigual que não aceita que pessoas como eu ocupem esse espaço. Mulheres pretas, pobres, que costumam se posicionar, se tornam alvo preferencial das mais diversas formas de violência. Não tenho medo de falar o que penso, tenho medo de viver em uma sociedade tão racista e tão machista em que a cada 23 minutos uma mulher é agredida. Eu tenho medo disso. Mulheres pretas, pobres, que costumam se posicionar, se tornam alvo preferencial das mais diversas formas de violência. Não tenho medo de falar o que penso, tenho medo de viver em uma sociedade tão racista e tão machista em que a cada 23 minutos uma mulher é agredida. Eu tenho medo disso. Também durante o Carnaval, você foi alvo de fake news e precisou até gravar um vídeo esclarecendo que não era você naquele áudio e que não precisa esconder suas opiniões. Como essa situação te impactou? A situação não me impactou em nada. Só é cansativo você precisar ficar respondendo para as pessoas que aquele produto não é seu. A fake news é uma questão que está aí e que a gente precisa combater, não por que aconteceu comigo, mas porque é devastador a gente ver muita gente morrendo por conta de informações equivocadas. A gente comete muitas atrocidades em nome de informações falsas. Então, fico extremamente angustiada quando vejo esse tipo de informação circulando. Fiz um vídeo para evitar que novas informações como essa voltem a circular, até porque eu discordava de tudo o que estava nos áudios, discordava muito e fiquei muito incomodada, até porque a voz nem parecia com a minha.

O que representa, para você, poder levar suas opiniões para o programa de Fátima Bernardes? Existem conversas para outros canais, como o GNT? Poder levar as minhas opiniões para vários espaços é, para mim, uma reparação histórica. Posso ser, em alguns momentos, a voz daquelas e daqueles que nunca puderam falar nada. Então, de repente existe uma mudança histórica, de um perfil como o meu que está ali ocupando um horário nobre na televisão, na maior emissora da América Latina. Então, sim, me sinto muito lisonjeada. E sobre as conversas que existem, elas existem, sim, mas são só conversas. Como costumo dizer: eu sou de candomblé e na minha religião, o segredo é sagrado (risos). ServiçoO quê: Lançamento do livro Como se Livrar de um Relacionamento Ordinário (Agir | Preço R$ 34,90 | 144 páginas), de Tia MáQuando: Terça-feira (10), às 19hOnde: Livraria Leitura do Shopping Bela VistaEntrada gratuita