‘Todo ser humano precisa se sentir necessário’ diz maestro Ricardo Castro

O diretor-fundador do Neojiba avalia os dez anos do programa que se tornou referência e está prestes a ter uma sede

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  • Laura Fernades

Publicado em 25 de abril de 2017 às 06:10

- Atualizado há um ano

O pianista e maestro baiano Ricardo Castro, 52, diretor-fundador do Neojiba, avalia os dez anos do programa que se tornou referência e está prestes a ter uma sede própria. “Temos um tesouro nas mãos”, diz Ricardo, ao defender a cultura como prática transformadora. "O Neojiba está no fronte dessa luta difícil, justamente no momento em que as ciências humanas e as práticas artísticas têm sido atacadas em detrimento de um avanço tecnológico", destaca. Confira a entrevista completa.

Qual avaliação você faz do Neojiba nesses 10 anos?A gente entra nesses dez anos com muita energia positiva e muito orgulho pelas transformações que a gente presenciou. Dez anos é tempo suficiente para poder verificar impactos reais nas vidas dos integrantes do Neojiba e esse resultado nos dá mais segurança para continuar na mesma direção. Continuamos com nossas metas fundadoras, que é oferecer oportunidade de qualidade a toda a juventude e às crianças do estado da Bahia.O maestro e pianista Ricardo Castro, 52, é o diretor-fundador do Neojiba(Foto: Arisson Marinho/CORREIO)

Foi possível cumprir com todas as metas previstas para esses dez anos?A única meta não cumprida pelo Neojiba, nesses dez anos, foi ter sua sede principal, mas estamos trabalhando seriamente para que isso se resolva nos próximos 12 meses. Estamos bem avançados, prontos para iniciar as obras no Parque do Queimado [na Liberdade], dentro de 60 dias, no máximo. Foi um processo longo demais e, mais uma vez, demonstra que o Neojiba tem sido um milagre cotidiano, porque tudo o que conseguimos foi sem uma sede própria. Tem um pequeno jogo na internet que é ‘nove verdades e uma mentira’. O Neojiba realizou tantas coisas inverossímeis que ganharia a palma de ouro desse jogo, de tanto o que aconteceu e que não estava na expectativa de ninguém. Como ver a primeira orquestra juvenil brasileira se apresentar no exterior e essa orquestra ser baiana; o número de turnês internacionais que a gente fez; o número de jovens no interior da Bahia que sonham em tocar repertório orquestral. Você caminha em Salvador e vê um jovem saindo do Bairro da Paz com um fagote nas mãos, isso é muito ficção científica para quem estava em Salvador em 2007. Ninguém acreditaria no que aconteceu. Então, a gente só tem o que festejar.

O que mais pode destacar?Pode-se dizer que dois terços das pessoas que entram no curso superior de música da Bahia, hoje, passaram pelo Neojiba. A gente tem jovens do Bairro da Paz, da periferia do Sesi, lá em Itapagipe, que acabam de ingressar no curso superior de música. Esse ano iniciamos o Promulti, que é um projeto de multiplicadores: todos músicos da Orquestra Sinfônica Juvenil da Bahia atuam nas escolas de seus bairros, não somente na área da música, mas no incentivo da prática artística em geral. Essas iniciativas têm mudado a cabeça dos nossos integrantes. Procuramos formar cidadãos que também são músicos, e não músicos que só entram para tocar. Por meio das práticas, a gente procura abrir a cabeça da nossa juventude para que ela tenha consciência da importância da participação no processo cidadão. Isso é um grande presente. Acho que todo ser humano precisa se sentir necessário e nossos jovens sabem que podem fazer a diferença na sua comunidade, na sua escola, dentro da sua família.

O que atrai os jovens para o Neojiba?Tenho certeza de que o Neojiba construiu uma imagem de carinho, de cuidado, de um trato diferenciado com esses jovens e essas crianças, o que faz com que eles procurem uma porta para entrarem no programa. Essa comunicação é criada no ambiente de prática musical coletiva e isso tem atraído mais do que o conteúdo, em si. Não é porque eles vão tocar uma sinfonia de Beethoven, é porque eles vão tocar desta maneira e com essas pessoas. Não é o repertório, o conteúdo do que se passa, mas como fazemos isso. Acho que isso é que tem atraído os jovens. O Neojiba, hoje, tem grande respeitabilidade internacional, somos referência. Ou seja, a gente tem um tesouro nas mãos. A gente espera que esse momento crítico do país não afete nosso caminho de forma grave. Esse momento é realmente muito difícil para todos, mas somos responsáveis por criar um ambiente para que esses jovens e essas crianças tenham um futuro melhor.

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O que te motivou a criar o Neojiba?Em 2007, eu me encontrava com uma carreira consolidada como pianista, residente na Europa há mais de 20 anos, já tendo vivenciado o que a gente pode chamar de patamar mais alto da carreira de músico. Mas o vazio que me acompanhava vinha do fato de saber que tinha resolvido a minha vida, mas a do meu país continuava muito aquém das capacidades. O fato de ter visto o resultado do El Sistema, na Venezuela, foi que me deu coragem de tentar convencer as pessoas para que programas semelhantes fossem implantados aqui. Mudou totalmente a minha vida. Eu vivia num mundo privilegiado e tive que abandonar essa bolha de proteção que é viver na Suíça, um mundo quase perfeito, sem problemas sociais, para vir para um lugar onde ninguém acreditava que seria possível implantar um programa onde jovens tocariam em orquestras sinfônicas. Por uma série de preconceitos: “o baiano é preguiçoso, não tem disciplina, gosta de barulho” . O maestro Abreu [Jose Antonio Abreu, criador do El Sistema] me deu um conselho: tapar os ouvidos e seguir em frente, porque as críticas seriam enormes. Hoje, todos são pegos de surpresa quando veem a Orquestra Juvenil da Bahia fazer duas turnês internacionais no mesmo ano. Nem a Osesp faz isso. Temos enormes qualidades aqui que eliminam todos os preconceitos que as pessoas têm do nosso povo. Hoje você vê uma criança do Bairro da Paz que sonha em tocar na Filarmônica de Berlim. Isso é incrível. Para mim, é o melhor presente em dez anos. O Neojiba, hoje, é um exemplo de experiências que deram certo e que muita gente quer copiar. Dizemos de coração aberto: copiem tudo. Aqui não tem copyright.

Quais são os próximos planos, expectativas?Queremos estabelecer uma política, a longo prazo, onde a prática artística em geral, não só a música, faça parte do cotidiano de todas as crianças. O Neojiba está no fronte dessa luta difícil, justamente no momento em que as ciências humanas e as práticas artísticas têm sido atacadas em detrimento de um avanço tecnológico, de problemas econômicos. Acreditamos que um ser humano mais equilibrado, integralmente, vai colaborar de forma mais efetiva para sua sociedade. Inclusive, em tecnologia, matemática, medicina, nas áreas das exatas. Esse ser humano precisa desse componente equilibrante, que é o componente afetivo e é a arte que o toca da maneira mais efetiva. Então, é uma meta do Neojiba que isso seja feito em larga escala, defendido como política pública. A cultura, não como objeto de consumo, mas a cultura como prática. Que a prática da construção da beleza faça parte da cotidiano da criança e do jovem. A gente considera que por aí a gente transforma e, quem sabe, salva o mundo.