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Sem um teto para viver ou sem dinheiro para passagem, eles se contorcem sobre as cadeiras azuis
Alexandre Lyrio
Publicado em 12 de junho de 2017 às 06:00
- Atualizado há um ano
O lugar que existe para ser abrigo provisório, ponto de partida para outros tantos lugares, por onde 750 mil pessoas a cada mês apenas passam, a aposentada Elisabete Pinheiro, 71 anos, tem como destino final. Há dois anos, a Rodoviária de Salvador é a sua morada, a casa que abriga suas esperanças, o último teto dos seus sonhos.
Passa de 1h da manhã. Sentada, encurvada para o lado direito - a forma que encontrou para ajeitar-se entre os braços de duas cadeiras da área de desembarque - dona Elisabete dorme ali todas as noites. E passa boa parte dos dias. Ela e outros tantos. O número varia, afinal de contas alguns conseguem se mudar dali. Mas, neste momento, nos dois dias que o CORREIO visitou o terminal, cerca de 15 pessoas tinham a Rodoviária como última parada.
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Na Rodoviária, tem os que simplesmente esperam o ônibus. Mas tem os que esperam a vida lhes dar uma oportunidade. São moradores de rua, gente com transtorno mental, bêbados ou simples equilibristas das cadeiras azuis. Até porque, não é permitido ficar no chão. Mas tem sempre alguém que consegue se esconder. Dona Elisabete usa como travesseiro os poucos pertences que lhe resta. Uma pequena caixa de papelão e uma sacola com roupas e produtos higiênicos.
“O certo é por aqui mesmo. O certo pra dormir é por aqui mesmo”, diz Elisabete, explicando que foi expulsa de uma casa de família onde trabalhava. “Teve um problema aí. O pessoal me botou pra rua”. Não sabe dizer ao certo onde morava. “Eu morava... Era gente minha... Uma família. Mas teve um problema aí e me botaram pra fora”. Mas, por que a Rodoviária? “Vim para a Rodoviária porque não tinha pra onde ir. Foi o teto que achei”.
Não se recorda a última vez que deitou sobre uma cama. Imaginem. Toda noite, sua cervical septuagenária entorta-se aos poucos para o lado direito até cair em sono profundo. Como consegue? “É o jeito”, resume-se a dizer. Os funcionários das lojas 24 horas conhecem a história de cada um. Nesses dois anos, Elisabete contou muito mais para a balconista da lanchonete do que para a nossa reportagem. “Ela praticamente mora aqui. Assim como muitos e muitos. “Já perguntei se ela tem filho, ela diz que nunca teve filho. Diz que é de Feira de Santana e o marido morreu. A família que sobrou botou ela pra fora”.
Também acredita que Elisabete, a qual chama de “Tia”, teve o cartão de aposentadoria roubado. “Tia diz também que é aposentada. Parece que alguém pegou o cartão dela e tá recebendo o dinheiro. Ela não tem documento nenhum”. A falta de documentos é comum entre os que se refugiam no terminal. Mas, diferente de outros locais públicos, a rodoviária se mostra acolhedora. Os próprios seguranças da estação costumam ajudar os sem-teto.
“Rapaz, é uma guerra, viu. A gente tenta contribuir de alguma forma, providencia banho e até alimentação quando possível. A gente também procura as famílias deles. Só tiramos daqui à força se nos causar problemas. Mas, no geral, eles são tranquilos. E a gente ajuda, viu”, diz Evanildo dos Santos, que trabalha como “agente de plataforma” há 13 anos, muitos deles nas madrugadas. “É uma situação muito triste”, define.
Cozinheiro Aparência e sobrenome alemães e cara de garçom do Tchê Picanhas, Euvídio Egvarth, 62 anos, dorme em uma das cadeiras da área de embarque. A cabeça está apoiada na palma de uma das mãos. De fato, não é garçom, mas cozinheiro, churrasqueiro de mão cheia. Veio de Santa Catarina para Salvador em busca de emprego. Gastou o dinheiro que tinha, teve o celular roubado e há cinco meses está “preso” na Rodoviária.
“Eu vim trabalhar. Aqui a orla é grande e achei que arrumaria emprego. Mas procurei em todas as casas e nada”, conta Euvídio. Sem ter como se comunicar com a família, de vez em quando consegue falar com os filhos. Mas, envergonhado, ainda não disse a verdade a eles. “Eles pediram para ‘mim’ voltar. Mas não falei que eu tava na Rodoviária, não”, admitiu. Precisa do valor da passagem para retornar, mas ainda sonha com o trabalho. “Estou esperando os retornos. Mas sem celular fica difícil”.
Aniversário Mãe e filha usam uma folha de papelão para apoiar as costas nas cadeiras. Dormem de frente uma para a outra. A menina, hoje com dez anos, sequer acorda enquanto a mãe conversa com a gente. Segundo funcionários da Rodoviária, as duas moram ali há três anos. Mas a mãe nos confidencia que vive nos terminais da vida há mais tempo. Já chegou a morar no aeroporto. Depois, passou uns tempos na rodoviária de Feira de Santana.
Ela diz que anos atrás ela e a filha foram expulsam de casa por bandidos. “Marginais me botaram para fora e vim parar aqui. Eu morava aí em cima”, disse, apontando para o lado de Pernambués. De todos os moradores do terminal, mãe e filha é quem mais chama a atenção. Afinal de contas, trata-se de uma menor morando na rua. “Já veio até conselho tutelar, mas ninguém resolve”, disse o coordenador da segurança, que preferiu não se identificar.
Enquanto isso, a mãe diz que sua nova casa está ficando pronta. “Só falta os telhados e os blocos da parede”, garante. Ou seja, falta quase tudo. Os funcionários confirmam: não há casa. “É viagem dela”, alertou um segurança. Mas o fato é que a mãe arrumou um bico. Tem lavado carros na região do Shopping da Bahia.
Recentemente, a filha ganhou um dia de princesa no dia do aniversário. Uma mulher que a conheceu gravou um vídeo da menina e espalhou nas redes sociais. Ela pedia uma festa. Dezenas de pessoas se juntaram e organizaram um aniversário de arromba. “Foi ótimo. Mas foi só por um dia, né?”, diz a mãe. Infelizmente, nem todas as histórias de vitórias são perenes, como a de um cadeirante que chegou a viver anos na Rodoviária. Era o único morador que dispensava as cadeiras azuis. A dele tinha duas rodas.
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Depois de perder a casa – e as duas pernas – buscou o terminal como refúgio. Conseguiu reunir documentos para receber um benefício. Hoje mora de aluguel, mas, como fez na última terça-feira, sempre volta para rever os companheiros de madrugadas. Arredio, não quis se identificar, conversar com a reportagem ou posar para fotos. Todo o direito. Conseguiu se mudar dali. Sua última parada é outra. A mesma que mora nos sonhos de dona Elisabete.