Um brasileiro, com integridade psíquica, pode se queixar de tédio?

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  • Malu Fontes

Publicado em 22 de outubro de 2018 às 04:01

- Atualizado há um ano

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Talvez tenha sido sempre assim e eu é que não tivesse reparado direito antes. Nesses tempos de temperaturas vulcânicas eleitorais, os radares que alertam para os limites de alucinações coletivas parecem ter sido todos desativados e tanto dentro quanto fora do espectro político as aberrações pulam em cardumes em nossa frente, como se estivéssemos diante de uma piracema frenética, alucinante que não dá sinais de cessar. Aparenta ter sumido do imaginário das pessoas, e há muito tempo, qualquer sensação semelhante ao tédio. Um brasileiro, com sua integridade psíquica sob controle, pode se queixar de tédio? 

Se por um lado a tecnologia digital colocou de pernas para o ar os modos de chegar aos saberes, os comportamentos sociais e as formas de se fazer campanhas eleitorais, empurrando o velho protagonismo da televisão para o fundo da fila das importâncias, por outro a nuvem e os serviços de busca nos indenizam toda hora de eventuais prejuízos outros que tivemos. Para cada paulada de mentiras que a tecnologia nos entrega delivery, chega em seguida o desdito, o chiste, o meme, a ridicularização da informação do último segundo. E ninguém pode se queixar de que a revoada de informação só traz o monotematismo da política partidária e da polarização. Traz de tudo.

LAMBUZADAS  Um país pode se considerar excêntrico quando a gente abre o segundo maior jornal e lá está uma notícia para lhe informar que, a partir de agora, os cariocas não precisam mais ficarem com as mãos lambuzadas de sal, de óleo, manteiga, leite moça, açúcar ou bacon, a depender do paladar: “Comer pipoca com pinça vira mania entre os cariocas”

Não era anúncio publicitário de um empreendedor criativo que saiu em defesa da limpeza das mãos dos comedores de pipoca da cidade maravilhosa. A notícia tinha como objetivo informar os leitores sobre a última moda na cidade: comer pipoca com uma pinça de plástico. 

TÊNIS NO BANHO   Nós brasileiros somos muito engraçados e contraditórios. Ao mesmo tempo em que os up to date são capazes hoje de linchar um serumaninho involuído que ouse usar um canudo de plástico para ingerir qualquer líquido, acusando-o de insensível, por poluir o meio ambiente e engastar criaturas aquáticas com plástico, surge como tendência charmosa o quê? Pinças de plástico para comer pipoca.

Poucos meses antes já havia circulado nas redes sociais e se tornado polêmica em sites muitíssimo lidos uma outra tendência pitoresca. Em um post onde se via um pé com a pele toda estropiada e fotografado por baixo se advertia sobre a importância de tomar banho calçado, pois ralos e pisos de banheiros são um altar de germes, sujeiras e doenças que, mais dia menos dia, vão detonar a saúde dos pés. Aí se deu um grande debate nacional, que terminou, claro, com desconhecidos acusando-se entre si de imundos, nojentos, ignorantes em biologia e algumas conclusões desse tipo: por via das dúvidas, melhor tomar banho usando tênis herméticos, pois a parte de cima do pé também é vulnerável aos perigos ameaçadores dos pisos de banheiro.

VIADUTO   As aberrações não estão só nas redes, nas notícias improváveis ou nas correntes de parentes. Está na linguagem adotada pelas pessoas. Outro dia, descobri que em algum momento adquiri características de um viaduto. Ouvi o verbo acessar dito com toda a naturalidade do mundo com um sentido que jamais suspeitei existir e aplicado literalmente a mim. “Eu tenho procurado não lhe acessar porque sei que seu tempo é curto”. E por aí descambaram variações. Eu seria uma pessoa muito acessada. Deduzi que alguém que tem muitos interlocutores e muitas demandas é como uma rua ou um viaduto: tem formas e intensidades de acesso, o que torna essa pessoa, inclusive eu mesma, muito “acessada”. Mas a língua é viva e a vida, apesar das aberrações, continuará.