Um dia depois do outro: o bravo Pancho e o lado fundo da lua

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  • Da Redação

Publicado em 29 de julho de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Mãos gordas e suadas me seguram pela barriga e me colocam no centro do palco circular quase feito lua de madeira carcomida pelo tempo devorador. As mãos gordas e suadas cheiram a tabaco e a ranço de sovaco sujo. O dono das mãos gordas e suadas que me colocam no centro do palco circular quase feito lua de madeira carcomida pelo tempo devorador grita a mesma coisa todas as noites desde sempre:  - Hora de trabalhar, Pancho. Arriba! No me rompas las pelotas! Entre en la casa correcta, coño!

A vontade é grande de não entrar na casa certa e premiar alguma criança com brinde vagabundo. Mas o senhor Ladislau, argentino de Mendoza, sabe me comprar. Põe montinho de capim na casa ‘correcta’ e eu, no piloto automático, entro na casinha de número 12, 33 ou 40, as casas onde o senhor Ladislau oculta o montinho de capim que me apascenta a fome de um dia inteiro sem comer.

[Devo informar ao distinto público: nas beiradas desse palco circular feito lua de madeira carcomida pelo tempo devorador existem 40 casinhas, mas o senhor Ladislau vende apenas 37 bilhetes, por isso preciso entrar nas casinhas cujos números o senhor Ladislau não vende].

No dia em que vacilei e entrei na casinha errada, confundido pelo cheiro de perfume barato emanado de certa mulher que urrava ’29, 29, 29’, me fodi. Só não fui assado e devorado pelo senhor Ladislau porque eu sou primeiro e único, não tenho substituto, se eu morrer o senhor Ladislau morre também – vai demorar certo tempo de o senhor Ladislau arranjar outro Pancho e, nesse ínterim, o senhor Ladislau vai viver de quê?

Formamos infame ecossistema – ele precisa de mim – eu preciso dele. Mas admito: passo os dias pensando em matá-lo, mais exatamente em lhe furar os olhos negros – e esse dia vai chegar, ora, se vai!

Enquanto não me enfio na casinha certa nas noites de todos os dias, o senhor Ladislau me confina em gaiola fedorenta, sem pão e sem água. Sou prisioneiro – penso quando quero me martirizar. Mas logo em seguida, para me consolar e continuar vivendo, me pergunto: - Mas quem não é, Pancho?

Tenho insônia infernal. Quando durmo tenho pesadelos infernais. Entre uma coisa e outra coisa, na verdade uma ‘merdassó’, conto todos os cordeirinhos que cabem no meu pequeno cérebro ou sou devorado por quero-queros de bicos agudos e vorazes. Ai de mim!

Mas nada como um dia depois do outro – cedo aprendi com a senhora Agnes, que me vendeu ao senhor Ladislau por algumas patacas. Ontem à noite o cipó de aroeira voltou ao lombo de quem mandou dar. Assim que o senhor Ladislau repetiu pela milésima vez ‘no me rompa las pelotas’, eu voei na jugular dele e com meus dentes afiados transformei o pescoço dele em caudaloso jato de sangue. E fugi. Só paro de fugir quando chegar no lado fundo da lua.

[Segundo o Dicionário Houaiss, o preá, protagonista deste enredo, é ‘designação comum aos pequenos roedores sul-americanos, da família dos cavilídeos, tem corpo robusto, orelhas curtas e incisivos brancos e afiados’].