Um refrigério, ou fábula panglossiana para nos entorpecer

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  • Da Redação

Publicado em 7 de outubro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Houve lobo mau muito mau. Pra lá de mau. Ruim pra dedéu. Cutucava o cão com vara curta. Espantava velhinhos caquéticos com uivos cavernosos. Roubava moedas do chapéu dos cegos das esquinas. Espancava gatos e cachorros de rua. Cuspia nas frutas e verduras vendidas nas barracas da feira. Defecava dentro do confessionário da única igreja local. Punha açúcar em comida de diabético. [Houve lobo mau – chamava-se Tristão essa criatura nefasta – que era o diabo chupando manga azeda].

Misógino, odiava lobas e meninas. Uma garota em especial lhe provocava asco, pior, náusea: Isolda, que chovesse ou fizesse sol, usava capa e chapéu vermelhos. Tristão não a deixava em paz, e grunhia para todo mundo ouvir: - Anda assim escondida dos olhos da gente porque é careca e tem o corpo torto feito os camelos. Nosferatu!

Isolda, risonha e franca por natureza, morava sozinha na floresta. Não tinha medo de nada. Não ligava para as baboseiras que ouvia, e ainda tirava onda de Tristão. Vociferava e gargalhava: - Você não é lobo mau coisa nenhuma. Você precisa mesmo é de namorada pra chamar de sua! Até que você não é feio, sabia? Aposto que por trás dessa carantonha se esconde coração de manteiga!

Mas já estava escrito. Maktub. Tristão-Lobo-Mau esquartejaria Isolda-Chapeuzinho-Vermelho e a devoraria com molho picante de páprica tal e qual ocorre no capítulo final das histórias de carochinha. [Isolda sabia desse vaticínio. Sabia que tudo já estava escrito – mas dava de ombros e dizia: - Vou reverter essa história. Tudo que está escrito pode ser reescrito ou não me chamo Chapeuzinho Vermelho].

O casal que fora criado para se odiar mantinha a rotina de selvageria. Ele a xingava. Ela retrucava: - Você está lindo hoje, lobo bom! Ele esbravejava: - Lobo bom, o caralho!

Em belo dia de primavera feito hoje, o destino fez peraltice que só o destino, esse trapaceiro, é capaz de fazer. Tristão, sempre pilhado, tropeçou na linha férrea, bateu a cabeça no trilho, e desmaiou. Enquanto isso o apito do trem trinava cada vez mais perto. Então surgiu a oportuna Isolda, que o salvou da morte iminente.

Então o milagre se operou. Tristão acordou do desmaio nos braços de Isolda e, talvez tresloucado pelo choque, balbuciou em prantos: - Você é a mulher mais linda que os meus velhos olhos de lobo mau já viram.

Isolda se enterneceu. Beijou-o com sofreguidão.  Era como se Tristão amasse Isolda desde o início dos tempos. Abraçaram-se, e seguiram juntos pelo coração da floresta.

Tristão – a pancada na cabeça parece ter provocado tsunami arrasador nas suas convicções – sibila amorosamente: - Não se bate em mulher nem com uma flor, Isolda!

Isolda, eterna força da natureza, retruca: - Não se bate, nem com uma flor, nem em mulher, nem em homem, nem em criança, nem em bicho, nem em nada. Falou?

[O narrador não afirma que Tristão-Lobo-Mau e Isolda-Chepeuzinho-Vermelho serão felizes até que a morte os separe por simples razão. Eles já estão mortos, e felizes, há 50 anos. Que a morte lhes seja longa].