Um reggae para dona Lili, ela, a Liberdade

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Malu Fontes
  • Malu Fontes

Publicado em 15 de outubro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Este texto é uma caçada interior em busca de uma tradução. A tradução de uma ideia de país que se anuncia tardiamente na imagem imponente de sacerdotisa negra da escritora mineira Conceição Evaristo, diante de sua plateia na Flica. Um país que, nos movimentos dos corpos e no som das vozes dos jovens nas madrugadas, parecia agarrar com unhas e dentes um futuro escorregadio de onde a liberdade ameaça escapar para não voltar tão cedo.

A cidade de Cachoeira, uma velha senhora negra e cheia de netos, altivos, inquietos e articulados, que romperam a pele de uma cultura do passado que não lhes dava lugar e fizeram, ali, ancorados nas paredes da Universidade do Recôncavo, um chão e um palco para suas vidas, era a amostra concreta de um Brasil profundo que não vai se deixar virar boi com dois gritos nem dois tanques. E se não houver jeito, a peleja vai ser travada com vísceras, sangue novo e talento para contar tudo a todo o mundo.

Retinto A velha cidade pulsa e repulsa pelas mesmas coisas, abrindo vãos com ou sem pontes entre dois tempos, duas eras. Na festa, pulsavam tradição e renovação, passado e futuro, celebração e protesto, tudo apaziguado pela sutileza de quem parece já estar convencido, insatisfeito ou feliz, de que não haverá volta na espiral de liberdade futurista que incrustou-se na cidade. Nela, a universidade e sua pulsação juvenil e a Flica e suas reflexões sobre os antes e os depois, locais ou globais, são, ao mesmo tempo, sintoma, cura, efeito colateral, problema e solução.

Não se sabe como será exatamente o país que, ao final do dia 28, as urnas anunciarão. Mas seja ele qual ou como for, muita gente precisará de canções para ninar gente grande e, como não poderia deixar de ser, em se tratando de um país com esse caldo cultural, a primeira a se candidatar ao posto é um samba enredo.

Merval A Mangueira anunciou seu enredo para o Carnaval 2019: “História para ninar gente grande”. Mas poderia se chamar um samba para Marielles. Brasil, meu nego/deixa eu te contar a história que a história não conta/o avesso do mesmo lugar/é na luta que a gente se encontra/tem mais invasão que descobrimento/salve os caboclos de julho/quem foi de aço nos anos de chumbo/Brasil/chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês/abre alas para teus heróis de barracões/tem sangue retinto pisado/atrás do herói emoldurado/eu quero um país que não está no retrato/teu nome não veio do céu/nem das mãos de Isabel.

Na Flica, ao falar de sua candidatura a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, onde seria a primeira escritora negra e onde teve apenas um voto, Conceição Evaristo lembrou Gilberto Freyre. Se foram as mulheres pretas que mastigaram o português de Portugal, misturaram com a africanidade e colocaram um português do Brasil na boca dos sinhozinhos e sinhazinhas brancas, então foram elas que moldaram essa língua aqui e a diferenciaram. Se essa é a tese de Freyre, por que uma escritora preta, no século XXI, ainda não tem um lugar na ABL? Talvez porque o negócio da ABL não seja exatamente literatura. Se fosse, o que Merval Pereira estaria fazendo lá?

Tanques Do lado de fora dos aplausos a Conceição, os meninos pretos e as meninas pretas, com seus cabelos e suas roupas à margem das revistas de moda e com mais estilo que as passarelas fashionistas do mundo, entoavam um hino para esses tempos em que o outro lado da força já está com o dedo no gatilho. Nada ali era tão tradutor de tudo ao redor quanto o reggae de Edson Gomes, feito para Lili, dona Lili, ela, a Liberdade.

E dançava-se e cantava-se Lili como se seus pulmões fossem pular para fora: “vamos amigo, lute/vamos amigo, ajude, vamos, amigo, levante e ajude/senão a gente acaba perdendo o que já conquistou/a vida ainda não acabou...nem acabará [...]. Cantemos todos para Lili e escolhamos nossas canções e histórias para ninar gente grande, antes, durante e depois, dos carnavais ou dos tanques.