Um terço das vítimas de morte violenta não é identificado no local do crime

Milésima vítima de homicídio em Salvador e RMS este ano foi executada com três tiros na Fazenda Grande do Retiro

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  • Da Redação

Publicado em 20 de setembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A milésima vítima da violência em Salvador e Região Metropolitana este ano não tem nome. Sobre o corpo encontrado às 21h37 do dia 3 de setembro em frente à Escola Municipal Austricliano de Carvalho, na Rua Candinho Fernandes, se sabe pouca coisa: era um homem, aparentando ter entre 18 e 21 anos, executado com três tiros na cabeça.

Uma foto mostra um rapaz negro caído no chão da estreita ladeira que leva ao Largo do Tanque. Mas, não há informações sobre sua história, onde ele morava ou o que fazia em Fazenda Grande do Retiro, onde 17 pessoas foram mortas de forma violenta de janeiro a setembro.

Mais de um terço das vítimas dos crimes violentos letais intencionais (CVLIs) em Salvador e RMS esse ano não foram identificadas no local do crime – dos mil primeiros assassinatos, 338 vítimas tiveram a identidade ignorada. Em alguns casos, nem mesmo o sexo foi constatado logo que o corpo foi encontrado.

Em geral, vítimas não identificadas de crimes violentos na Bahia estavam sem documentos quando a morte foi constatada, explica a Polícia Civil. Cabe ao Departamento de Polícia Técnica (DPT) fazer a identificação em qualquer caso, normalmente por digitais. Este ano, 40 pessoas foram sepultadas como ignoradas, mas não se tratavam só de vítimas de CVLIs, mas de mortes suspeitas, como morte súbita, suicídio e acidentes. Quem matou? A falta de identificação de vítimas pode indicar um padrão de autoria, acreditam especialistas. Para o pesquisador Daniel Cerqueira, que estuda Economia do Crime e Segurança Pública, é membro do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pessoas andam sem documento, mas é comum que autores de crimes os retirem das vítimas para dificultar a identificação.“É típico no caso de ações de milícias, de grupos de extermínio ou mesmo de traficantes,  que matam a vítima, tiram o documento, fazem o o ‘microondas’ (carbonização) ou outras táticas para dificultar a identificação da vítima. Isso pode também dificultar o processo de percepção criminal, para identificar quem foi o autor do crime”, pontua Daniel Cerqueira.O cientista político Joviniano Neto, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais na Bahia, concorda: “Uma das técnicas que os grupos de extermínio ou quadrilhas rivais fazem é carbonizar, colocar o corpo em locais de desova (diferente do local do crime) . É uma estratégia de dificultar a identificação, a investigação, e aumentar a impunidade de que matou”, aponta, lembrando o caso de Geovane Mascarenhas, jovem que foi esquartejado e carbonizado – uma tentativa de passar impune ao crime, cometido em 2014 e que teve 11 policiais  denunciados por homicídio.

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Em casos como esse, quando a falta de identificação não se resume à ausência de documentação, ‘dar um nome à vítima’ se torna mais complicado. Segundo informações do DPT, a primeira tentativa é feita com exame de necropapiloscopia - coleta de impressão digital. Se ela não pode ser captada, é preciso buscar registros odontológicos, fotografias e, em casos específicos, material para futuro exame de DNA, o que não é possível se a vítima não tem um parente próximo para comparar o material genético. Em Salvador, corpos ignorados são sepultados, em média, após 15 a 30 dias na Quinta dos Lázaros.

Sem documento Andar por aí sem documentos não é crime. Mas, recusar-se a se identificar quando questionado por uma autoridade é considerado contravenção penal, sujeita a multa. Fazer declarações falsas ainda pode dar em prisão de um a seis meses, diz o Artigo 68 da Lei nº 3.688/1941.

Diante disso, o presidente do Grupo Tortura Nunca Mais na Bahia levanta outra questão: muitos moradores de rua ficam sem documentos porque costumam ser furtados durante a noite. “Um dos trabalhos que se faz para recuperar essas pessoas é recuperar a documentação delas”, afirma Joviniano.

Por trás disso, ainda há o drama da busca de familiares por pessoas desaparecidas.“Nós temos no Brasil milhares de desaparecidos todo ano. E um desparecido que na verdade está morto é um luto que não se fecha. Se apareceu um corpo não identificado, ele pertence a alguém que tem mãe, pai, irmãos que estão procurando e que podem não achar”, afirma, indicando a necessidade de se manter um banco de DNA.A coordenadora da Pós-Graduação em Segurança Pública, Justiça e Cidadania da Ufba (Progesp), Ivone Freire, considera essa uma “invisibilidade violenta” e associação à falta de documentos à possibilidade de que as vítimas de fato não os possua. “É preciso considerar que a violência é um fenômeno muito causal e esse fato está vinculado à desigualdade social. Naquele momento, essas pessoas não existem, mas elas existem”, diz.

Na Bahia, no site do Disque Denúncia, há imagens de 466 pessoas desaparecidas - 345 homens e 116 mulheres. Alberiades Antonio Freitas, um senhor de 81 anos que desapareceu no bairro do Pau Miúdo em 1996 é a pessoa procurada há mais tempo - há 23 anos. Investigação A falta de identificação do autor do crime é um dos fatores que dificultam a investigação e, consequentemente, o combate à criminalidade. Em alguns casos, se agrava pela falta de informações sobre a vítima, diz o delegado Nilton Borba, da 4ª Delegacia (São Caetano).

A unidade é responsável por investigar crimes no bairro – onde 23 pessoas foram mortas esse ano – e adjacências, a exemplo da Fazenda Grande do Retiro. Das 17 registradas lá, 10 vítimas não foram identificadas no local do crime.“A gente tem feito o que é possível, estamos fazendo o trabalho de identificar as pessoas e prender, mas a dificuldade maior é identificar. E tem vítimas que a gente não sabe nem o nome”, afirma o delegado.Ele relaciona esses crimes – inclusive o que vitimou o rapaz que abre esta reportagem –, à disputa do tráfico de drogas na região. Segundo o delegado, nos últimos três meses, a briga por território entre uma facção com forte atuação no Lobato e outra que existe somente em São Caetano tem sido responsável por 90% dos homicídios na região. 

“As mortes nesse padrão, com três, quatro caras que chegam atirando e ninguém sabe, ninguém vê, estão relacionadas ao tráfico. Eles se matam mesmo que não estejam na área, basta que se encontrem”, explica.

Segundo ele, os homicídios na região reduziram em quase 50% no último semestre, mas ele reconhece que ainda é preciso reduzir mais.

Nos bairros citados nesta reportagem, o patrulhamento é feito, segundo a Polícia Militar, pelas companhias independentes das áreas, com rondas diuturnas, através do radiopatrulhamento motorizado, com guarnições atuando em viaturas, em rondas e em operações preventivas, repressivas e ostensivas. Além disso, há apoio das Bases Comunitárias, da Rondesp e Companhias de Policiamento Tático.

Para ajudar a reduzir os índices de violência e oferecer mais bem-estar e qualidade de vida à população, a polícia mantém projetos sociais, através das Bases Comunitárias de Itinga, São Caetano e Rio Sena. Os próprios PMS dão aulas de karatê, música, informática, ponto de cruz, teatro, educação física, xadrez, taekwondo e boxe.“Essas ações realizadas pela PM em parceria com as famílias representam, na prática, a mais expressiva ferramenta de prevenção à entrada de crianças e adolescentes no mundo da droga”, defende a PM. Mortes violentas seguem tendência de queda na Bahia As primeiras mil mortes violentas deste ano indicam uma média de 111 casos por mês – e quase quatro por dia – em Salvador e RMS. Ao mesmo tempo, mostram uma redução nos índices em comparação com anos anteriores. Em 2018, já tinha havido uma queda. E, desde que o CORREIO publicou pela primeira vez o especial Mil Vidas, em 2011, é a primeira vez que a milésima morte ocorre em setembro. Em 2018, foi exatamente um mês antes, em 3 de agosto. 

No Brasil, no ano passado, também houve queda - de 10,8% - nesse tipo de crime. Ainda assim, a redução não significa um número satisfatório. Em julho passado, o CORREIO mostrou que, de janeiro de 2011 a junho de 2019, 16.625 pessoas foram vítimas de CVLIs em Salvador e RMS – uma média de mais de 2 mil por ano.

Para o presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Joviniano Neto, a redução está ligada a fatores nem sempre comemoráveis, como o fato de determinada facção se estabelecer em um local e cessar as mortes em disputa.“Isso não é algo para se comemorar, mas há também a redução que é resultado da organização das comunidades, de um maior grau de consciência das pessoas”, afirma.Dados publicados semana passada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam para 5.346 mortes violentas na Bahia em 2018 – 1.115 em Salvador. Segundo a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), a redução resulta do trabalho conjunto das polícias Civil, Militar e Técnica.

As informações de 2019 ainda estão sendo coletadas por pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Anuário. E eles já encontram dificuldades. O Fórum não teve acesso aos dados detalhados das Mortes Violentas Intencionais na Bahia, mesmo após ter solicitado via Lei de Acesso à Informação.

“O Fórum Brasileiro de Segurança Pública classifica a decisão como uma afronta à Lei de Acesso à Informação e à transparência, numa atitude que vai na contramão da atitude demonstrada por todas as demais unidades da federação, que respeitaram a legislação e enviaram os dados”, diz a nota.

Sobre os dados solicitados pelo Fórum, a SSP-BA respondeu que não passa informações pessoais da vítima, como endereço e celular, mas somente dados básicos: nome, idade e cor da pele.

Perfil de vítimas da polícia baiana é desconhecido Na Bahia, as mortes em decorrência de atividade policial se resumem a um número: 794 ao longo de 2018. O número foi divulgado na semana passada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) de 2019. Mas, não há qualquer informação sobre o perfil dessas vítimas. A Bahia foi o único estado que não enviou as informações sobre o perfil das pessoas mortas por policiais.

Em todo o Brasil, essas mortes subiram 19,6%. Os dados constam no Anuário, divulgado pelo FBSP. Aqui, as polícias Civil e Militar mataram 794 pessoas em 2018, 13,3% a mais do que as 726 de 2017. Todas foram em atividade policial, sendo 48 por policiais civis e 746 por militares. Destas, 103 foram em Salvador. Policiais civis foram responsáveis por 10 mortes, e PMs, por 93.

Em nota, a Polícia Militar informou que, a partir do registro de um caso, é instaurado um Inquérito Policial Militar para apurá-lo na Corregedoria, além da investigação da Polícia Civil. 

Em todo o estado, seis PMs foram mortos em 2019: um em serviço, três de folga e dois reformados. Já a Polícia Civil informou que três policiais foram mortos este ano - todos fora de serviço.

Segundo a SSP-BA, “a polícia baiana responderá, sempre de forma legal e proporcional, os ataques criminosos com armas de fogo” e ainda que “os casos em que se observam ausências de confrontos, os servidores envolvidos são investigados e punidos”.

O pesquisador Daniel Cerqueira, do Ipea e do FBSP, explica que o aumento da violência policial não diminui a violência nas localidades: “Quanto mais mortes por intervenção policial, mais CVLIs. Há uma desculpa para o uso máximo da força, de que foi para conter bandidos, mas isso é um sintoma da brutalidade policial, que é uma consequência de um incentivo simbólico de autoridades”, afirma.