Uma carta para Elizabeth Bishop

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  • Kátia Borges

Publicado em 9 de março de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Sempre que penso na força do acaso, lembro daquele caju que você comeu numa passagem pelo Brasil que seria breve e levou duas décadas. Foi uma reação do corpo ao sumo ácido. Uma reação alérgica. Você seguiria numa viagem de descoberta pela América do Sul. Mas qual o sentido de seguir, quando o Destino põe o peso de suas patas sobre nosso crânio? É que eu ando, veja bem... Eu ando às voltas com algo que me arranha, e é como uma pequena ferida ácida que não cessa de esparramar seu sumo.

Estive doente e sem remédio, obcecada pela saúde. Abro os olhos de manhã e tudo me parece estranho, como coisa que eu não tenha vivido. E, no entanto, moro na mesma casa há séculos. Há semanas, não me imaginaria escrevendo esta carta, porque ela me força a algo como olhar no espelho. Dou voltas em torno do que pretendo. Estive pensando durante horas naquele poema que todos sabem. Horas pensando naquele trecho do poema que todos sabem. E agora mesmo o tenho aqui comigo e ele me olha como se perguntasse o que escreverei além do óbvio.

Talvez seja a força do que temos em comum, e não falo sobre a poesia, mas sobre a timidez e as desmedidas (e, por ora, ficaremos com este belo eufemismo). Então, entre a coleção de coisas que diria, escolho falar sobre as perdas, pois suponho que nelas se abriga tudo de mais precioso que se pode dizer. Já reparou como as histórias são sempre sobre os ganhos das pessoas? Prêmios, títulos e bibliografias. E, no entanto, viver é conciliar o que há de mais cotidiano com aquilo que assoma em nós de monstruoso. Todo anjo é terrível, já dizia Rilke. E confesso que sigo com esta espécie de koan metafísico a revolver por anos. Mas perder, ah, sim, perder é o que nos faz mais fortes, dizem os mais fortes. E não é mesmo nenhum desastre.

Há algo perverso em ser livre. Todas estas horas a pensar um verso, um parágrafo, uma frase... As possibilidades que excluem outras possibilidades... Os tais caminhos que aleatórios e cruéis riem de nós. Aprenderemos algum dia a rir com eles? Tenho ensaiado a dança sobre o abismo e fugas extraordinárias. Não sem alguma relutância. E, penso, a exaltação da resiliência é mesmo uma tolice enorme. Não há mal algum em deixar que tudo desmorone ou em manter-se sério diante da pilhéria cósmica que é o cálculo das probabilidades.

Um beijo, “cookie”.