Vamos falar sobre fracassos?

Não é fácil para ninguém, mas aprendi cedo que tentar encobrir erros para manter aparências não é bom negócio

Publicado em 7 de novembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há 10 meses

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A feijoada para cem pessoas azedou na hora da festa; o pernil de 5kg que o cliente pediu tanto para ser bem assadinho, ficou quase cru por dentro porque o forno não deu conta; a abóbora dos congelados virou água no prato da cliente, que nunca mais quis saber da minha comida; a ceia de Natal da família foi entregue às 23h30; saíram dezenas de lagartinhas do feijão verde do baião na hora de empratar para o salão cheio; os trinta quilos de comida congelada tiveram que ser descartados porque o freezer não segurou a onda e caiu no meio da noite; o nhoque de mandioquinha virou outra coisa estranhíssima e os comensais estão ávidos à mesa de jantar; o evento de pensamento foi um fiasco; a aula não vendeu; choveu torrencialmente e ventou de um jeito que os toldos saíram voando e os convidados, literalmente, não tiveram para onde correr; as pedras do Forte de São Diogo no verão esquentam tanto que na hora do casamento ao fim da tarde as flores estavam to-das murchas; os convidados chegaram e não tinha quem servisse porque a festa era em Monte Gordo e os garçons foram para Itapagipe; faltou comida porque a cliente projetou setenta mas apareceram mais de cem pessoas.

Esses e mais alguns outros episódios de uruca somam o meu precioso e incalculável acervo de aprendizados a custo de muito desespero, pico de pressão e quase-morte; minhas melhores oportunidades de crescimento disfarçadas de fracassos, tudo para chegar aqui nessa serenidade de vento no cabelo no quintal de mainha, toda conhecedora dos meus limites.

Nessas horas primeiro uma morte súbita seguida de ressurreição indesejada - coisa de cinco minutos, porque essas situações não permitem que se morra ali, o que seria bem mais fácil – depois uma enorme clareza, e o exercício máximo da objetividade. É o momento de encontrar a solução, porque tem de haver. Os convidados da festa paga com antecedência estão no salão e não devem sequer sonhar com o ocorrido. (Foto: Dona Mariquita/Divulgação) MANIÇOBA SALVADORA

No caso da feijoada (que azedou por conta de um calor absurdo e também de aspectos do além) por exemplo, eu tinha só o tempo do serviço de entrada para dar conta do prato principal de um almoço em comemoração aos 50 anos de casamento dos pais da cliente, que me honrou com a sua confiança. Nesse dia, não apenas o dinheiro para arcar com os prejuízos (que seria o meu lucro por um trabalho do cão), mas principalmente uma grande amiga me salvou. Liguei, obviamente desesperada, para Leila Dona Mariquita, contei o que tinha acontecido, e jamais vou esquecer do tom da sua voz ao me dizer: “Amiga, se acalme, acabei de mandar fazer maniçoba para a semana, tá quente ainda, venha buscar”. Tive um episódio de tremor, choro compulsivo e um amor ainda mais profundo por aquela cabôca. E já no percurso Cabula-Rio Vermelho, em companhia do garçom mais parrudo para carregar o panelaço de 25kg de maniçoba, pude sentir o afago da mão pesada de Saturno na minha cabeça e um zum zum zum de alguma coisa sobre limites no meu ouvido, coisa para processar melhor depois, com a devida distância.

APARÊNCIAS NADA MAIS

Não é fácil para ninguém, mas aprendi cedo que tentar encobrir erros para manter aparências não é bom negócio; mais lucrativo é pagar o preço da verdade. Eu acho

“Dani, o feijão azedou, mas vai ter maniçoba fresquinha do Dona Mariquita” – relatei à minha cliente, já apresentando a solução. Ela e o público, cujo perfil era fã de comida patrimonial, e que não sabia o que seria servido, devem ter ficado ainda mais felizes com a maniçoba de Leila do que com a minha feijuca. 

Amigas e amigos cozinheiros, invoco mais uma vez a sabedoria de Dona Canô quando diz (no presente mesmo) que “ser feliz é para quem tem coragem”, e divido os meus fracassinhos com vocês que é pra gente dar risada (agora, né?) e ver se larga a mão dessa bestagem de manter aparências a todo custo; da obrigação imposta de prestar contas e corresponder às expectativas de imagem de sucesso o dia todo, todo dia. É muita energia desperdiçada num projeto, este sim, fadado ao fracasso da gente mais que feijão azedo.

Quantos posts visualizamos de receitas que não deram certo em detrimento de fotos absolutamente incríveis de bolos muitas vezes solados por dentro? Quantos eventos com tarja CANCELADO POR MOTIVO DE POUCAS INSCRIÇÕES ao invés de ESGOTADO costumamos ver nas redes sociais? Quantas  desculpas esfarrapadas atribuindo a culpa à nova funcionária? Quantos posts massa arqui vados porque não engajaram? Quanto esforço vão e aumento de dívidas para não fechar o restaurante falido para manter as “aparências nada mais sufocando nossas vidas que apesar de  mal vividas tem ainda uma esperança de poder viver”? – beijo Márcio Greyck!

Esse caô é cansativo e frustrante demais. 

É confessar os crimes, pessoas queridas; integrar os erros, tropeços e fracassos ao que somos; é beijar o próprio joelhinho ralado e seguir adiante, porque só a bailarina da Disney que não tem pereba.

Vamos compartilhar nossos bolos solados, arrozes queimados, molhos empelotados, projetos falidos, e sonhos frustrados, pelamor! Bora rir, que a gente faz o que pode, como pode, com os recursos que temos e tudo bem! O mundo que aceite, que dói menos lá nele, e antes nele do que n’eu.

 A gente vai se entender melhor, você vai ver. O mundo vai até parecer mais bonito, e a nossa existência vai ganhar outro propósito. Eu acredito.

Assinado: Katita, ré confessa. 

Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do @piteu_cozinhafetiva