Vendedor de alho não busca solução nem rima

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 4 de março de 2018 às 01:40

- Atualizado há um ano

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Jamais poderia esquecer. Por volta de 2010 ou 2011 neste mesmo lugar no qual me abrigo agora ouvi grito que me soou dilacerante grito de dor: um gutural e retumbante aaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiii! Era quase meia-noite e esta ilha-um-dia-do-governador, na zona norte do Rio de Janeiro, mergulhava em silêncio sepulcral. O sono já me inundava e me alagava, mas recuou, deu alguns passinhos lentos para trás, e esperei o segundo grito, e o segundo grito veio, rascante e possante: - Aaaaaaaaaaaaiiiiiiiii! Pulei da cama num átimo e corri para a varanda em tentativa de ver o dono da voz que mugia de maneira tão tonitruante.

[Em vão 1. Não havia pé de gente nas cercanias. Voltei pro quarto, e demorei a dormir, na esperança de escutar outra vez esse desconcertante e gigantesco lamento. Em vão 2.  A noite insulana imergira de vez em silêncio sepulcral].

Nas noites seguintes, roí-me em expectativas. Desejava ouvir aquela dilacerante e rascante voz gritando aaaaaaaaaiiiiii outra vez. Primeira vigília de sono, e nada. Segunda vigília de sono, e nada. Terceira vigília de sono, e nada. Então cansei, e desisti. Concluí: poderia ter sido sonho ou delírio pré-sono. Acontece. [Os começos de madrugada insulanos continuaram imersos em silêncios abissais até que, certo começo de madrugada insulano, captei de novo o gigantesco e lancinante lamento].

Acionei minhas antenas auditivas na potência máxima, e apurei o seguinte e inesperado som: - Áaaaaaaaalho! Áaaaaaaaaaalho! Áaaaaaaalho! [Cáspite! Homessa!] Como assim alho? – perguntei-me apalermado. Ouvi + algumas vezes esse aaaaaaaaalho esticado, como se fosse palavra de borracha, chiclete vocal que se deixasse mascar na bocarra de alguém.

A ficha demorou a cair, mas enfim despencou: não era ninguém gritando aaaaaaaaaaaaaai. Era alguém gritando aaaaaaaaaalho. Mesmo assim pedi legendagem aos neurônios – e o neurônio-chefe-de-plantão me garantiu: - É a voz de homem a vender alho. Simples assim. Retruquei: - Como simples assim? Onde já se viu homem vendendo alho aos berros no começo da madrugada? Meu interlocutor foi curto e grosso: - Sem registro, sem registro, sem registro!

O passado virou futuro, e, 2018, eis-me na ilha-que-um-dia-foi-do-governador de novo. O homem do aaaaiiii ou o homem do aaaaalho, seja lá que porra gritasse, escafedeu-se de minha memória. De repente, não + no começo da madrugada, mas por volta das 9 horas de noite chuviscosa, potente voz de tenor volta a tonitruar: - Aaaaaaaaaalho! Aaaaaaaaaalho!

O som vem de muito perto. Eu e minha irmã Cecé vamos até a varanda ver de que homem parte aquela voz que parece vir das catacumbas e entoa a palavra alho com tamanha retumbância. Então o vemos: preto com não + de 30 anos, de pele oleosa, que brilha com os pingos da chuva. Carrega algumas réstias de alho sobre os ombros. Caminha – firme e decidido – como se não estivesse a fim de vender nada, mas apenas de exibir pelas fímbrias insulanas o tipo inesquecível que o unge. [Santo, santo, santo!]