Vidas interrompidas: mortalidade infantil cresce pela primeira vez depois de 26 anos

Conheça as dez cidades da Bahia com as maiores taxas de mortalidade

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  • Da Redação

Publicado em 20 de julho de 2018 às 04:00

- Atualizado há um ano

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Jade, filha de Luana, morreu com apenas 1  mês e 10 dias. A bebê de Angelina não teve nem um nome escolhido – os pais não tinham decidido se seria Laura ou Alice. Ela morreu ainda no hospital, no mesmo dia em que nasceu.

As meninas nasceram em cidades distantes pouco mais de 200 quilômetros: a primeira em Barro Preto, no Sul da Bahia; a outra em Ribeirão do Largo, no Centro-Sul. As duas vidas interrompidas tão cedo representam uma estatística indesejada: o aumento da taxa de mortalidade infantil na Bahia.

Pela primeira vez desde 1990, houve um aumento na taxa de mortalidade infantil – mortes de crianças com até 1  ano de idade – na Bahia, assim como no Brasil. Os índices vinham diminuindo ano após ano até chegar a 16,4 óbitos para cada mil nascidos vivos em 2015. No ano seguinte,veio o aumento: 18. O IBGE, que registra  óbitos, não aponta para  alta. O instituto, porém, chama a atenção para a subnotificação de óbitos.

A Bahia tem uma das situações mais críticas,  junto com Amapá, Amazonas, Pará, Piauí e Roraima. No resto do Brasil, o número passou para 14 - 4,8% em relação a 2015.

Individualmente, a situação dos municípios pode ser pior. Um levantamento feito pelo CORREIO usando o Datasus - o banco de dados do Sistema Único de Saúde - mostrou que pelo menos 169 cidades têm índices maiores que o do estado. As dez piores têm taxa superior a 44 mortes para cada mil nascidos vivos.

Os três primeiros lugares chegam a quase 60: Ribeirão do Largo (59,2), Feira da Mata (58,82) e Ponto Novo (56,91). Rio do Pires, Iramaia, Itiruçu e São José da Vitória  têm taxa maior do que 50 a cada mil.

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O Ministério da Saúde justificou esse crescimento com a epidemia do vírus da zika e a crise econômica. No caso da zika, houve uma queda no número de nascimentos e um maior número de bebês morrendo por má-formação grave. A crise econômica teria levado a mortes que poderiam ser evitadas – por diarreias e pneumonias.

“Há realmente questões de renda familiar que têm impacto no estado nutricional da criança, além da questão do saneamento básico, do grau de escolaridade da mãe e a própria assistência à saúde: que acesso essa família tem?”, questiona a especialista em saúde do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a pediatra Francisca Maria Andrade.

Até a seca Para a especialista, outra preocupação que também é a queda nos índices de vacinação em todo o país. Muitas doenças já erradicadas com a imunização estão com ameaça de voltar – é o caso da poliomielite e do sarampo. Além disso, ela destaca a seca – como a que o Nordeste enfrenta há mais de seis anos – como um fator que também pode contribuir para os grandes índices na Bahia.“A seca impacta tanto na quantidade e na qualidade da água quanto no preço dos alimentos. Uma família que tem uma renda baixa vai reduzir sua capacidade de aquisição de alimentos. E há uma preocupação muito grande com a resolutividade: a gente reconhece que houve um esforço para aumentar a cobertura dos programas como os agentes de saúde, mas é preciso alertar os gestores para que a equipe seja completa. Muitas vezes, faltam profissionais”, destaca a especialista.Ela conta que sempre diz aos gestores municipais que devem tentar evitar os óbitos maternos e infantis ‘a qualquer custo’. “Hoje, você tem recursos tecnológicos e financeiros para isso. O Brasil não é um país pobre. É um país rico, mas precisa direcionar melhor os seus recursos para quem mais precisa”, afirma.

Os dados não surpreenderam a vice-presidente da Sociedade Baiana de Pediatria (Sobape), Ana Paz. Na rotina de atendimento, ela diz que tem sido comum ver pais e mães sem emprego e que isso reflete diretamente na assistência às crianças.

“A gente tem visto uma desassistência muito grande nas unidades básicas de saúde, então, o acesso das gestantes ao pré-natal tem sido difícil. Muitas vezes falta vacina e as pessoas não têm sequer o dinheiro do transporte para se locomover. Tudo isso determina um mal acompanhamento de pré-natal que vai reverberar na saúde da criança”, diz a pediatra. Ela diz que é ‘muito triste’ ver crianças morrerem de causas evitáveis – muitas delas, inclusive, sequer têm a chance de ser acompanhadas por pediatras nas unidades básicas.

A pediatra defende a melhora na assistência nas unidades básicas, incluindo a cobertura vacinal para crianças e gestantes. “Também alimentação para gestantes, controle de pré-natal, orientação nas escolas e melhor distribuição de médicos no país. Priorizar que a criança seja atendida por um pediatra é muito importante”.

As cidades Enquanto países como Islândia e Finlândia têm taxas de mortalidade infantil de pouco mais de 2 para cada mil, Ribeirão do Largo, no Centro-Sul da Bahia, chega a quase 60. É a cidade que teve a maior taxa de mortalidade em 2016.“Diarreia é comum aqui, até mesmo pelo fato de a água não ser tratada. Aqui não tem Embasa, temos um órgão municipal. A água aparentemente é limpa, mas não é tratada”, diz a secretária do sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade, Érica Alves.Integrante do Conselho Municipal de Saúde, ela é quem conta a história da filha de Angelina. A criança, que não chegou a ser batizada, morreu no início do mês – ainda não entrou, portanto, nas estatísticas do Ministério da Saúde. Mesmo assim, o caso evidenciou uma situação comum para as proporções da cidade.

O bebê estava saudável e foi acompanhada durante todo o pré-natal. Durante os exames, porém, o médico alertou a mãe: a menina estava pesando quase cinco quilos. Não poderia nascer em um parto normal. Angelina, a mãe, foi levada a um hospital de Vitória da Conquista e, ao chegar lá, o médico atendente se recusou a fazer uma cesariana.

“O médico ainda zombou dela, disse que a história era mentira. Infelizmente, hoje, somos muito julgados pela aparência. Acharam que ela era ‘bestinha’. A menina acabou morrendo sufocada. Ela nasceu e não chorava, não se mexia. Levaram para emergência e, quando voltaram disseram que ela não tinha resistido”, conta Érica. Nenhum representante da prefeitura de Ribeirão do Largo foi localizado.

Já na terceira cidade com maior taxa de mortalidade, Ponto Novo, no Centro-Norte, a coordenadora da vigilância epidemiológica do município, Kátia Kelly Borges, afirma que os dados da secretaria são diferentes daqueles do Datasus. Segundo ela, em todo o ano de 2016, foram registrados dois óbitos infantis: uma criança de quatro meses com uma cardiopatia e uma de três meses que foi vítima de um afogamento.

“Não observamos isso (a taxa alta) pelos nossos dados, a não ser que não seja emitida a declaração de óbito. Em 2017, também tivemos só dois óbitos e, em 2018, não tivemos nenhum”, contesta ela, que cita ações como orientação alimentar, visitas domiciliares dos agentes de saúde e grupos de apoio para as mães.

Em Ouriçangas, o secretário municipal de Saúde, Raimirando Nogueira Barbosa, diz que a mortalidade infantil tem a ver com o atendimento ruim na atenção básica. “De 2017 para cá não tivemos mais esse problema de mortalidade porque passamos a dar mais atenção à saúde”, diz.

O secretário Raimirando diz que em 2016 ainda era comuM se faltar médico e remédios no hospital local e nos postos de saúde, uma situação que ele diz ter revertido na atual gestão. No ranking do Ministério da Saúde, Ouriçangas aparece em nono colocado entre as cidades baianas, com taxa de mortalidade de 44,19 por cada mil crianças nascidas vivas. 

Já a coordenadora da Atenção Básica na prefeitura de Iuiú, Lícia Cristiane Montalvão, cita a crise econômica como um dos fatores que contribuíram para a alta da mortalidade infantil: “Nossa cidade é pobre, então a crise impacta na questão econômica, no acesso a alimentação adequada”. Das 112 crianças que nasceram na cidade em 2016, cinco morreram com menos de um ano.“Entendo que estamos numa situação melhor hoje. Estamos dando mais atenção nas consultas às gestantes, falando da importância de fazer o pré-natal, dando orientações sobre alimentações que são nutritivas pra criança e que não são caras, e temos uma equipe com nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas e assistente social que auxilia muito também. Vamos em busca das famílias carentes para orientar da forma mais adequada”, afirmou Lícia CristianeProcuradas pelo CORREIO, as prefeituras de São José da Vitória, Itiruçu e Irajuba não responderam à reportagem.

Microcefalia  A pequena Jade nasceu no dia 13 de dezembro de 2015, em Barro Preto, no Sul da Bahia, com microcefalia e outros tipos de má-formação. Morreu pouco mais de um mês depois devido à microcefalia e a uma insuficiência cardiorrespiratória. Barro Preto não está entre as cidades baianas com maior taxa de mortalidade (o índice foi de 10,5), mas estava entre os cerca de 20 municípios que registraram óbitos por microcefalia pela zika.

Quando estava grávida, a mãe da menina, uma mulher identificada apenas como Luana, sentiu uma febre e foi ao hospital. Achou que era uma gripe e, assim, não procurou a unidade de saúde onde fazia o pré-natal. Só depois da morte da criança, falou dos sintomas - compatíveis aos da zika.

“Na época, a gente ainda não tinha aqueles testes rápidos. Não se falava tanto da microcefalia, tanto que o pré-natal hoje é trabalhado de forma a orientar o uso do repelente e blusas de manga comprida”, explica a coordenadora de atenção básica de Barro Preto, Sarah Gonçalves. Ela conta que, desde então, além dos testes rápidos, o município promove atividades educativas.

Para garantir a qualidade de vida de uma criança com microcefalia, é preciso buscar acompanhamento desde cedo. De acordo com a coordenadora do Centro Especializado em Reabilitação das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), Rosinei Souza, esse acompanhamento deve ser feito com médicos, neuropediatras, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas.

Em nota, a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) afirmou que a mortalidade infantil “envolve uma série de fatores, a exemplo do pré-natal, cuidado da Atenção Básica prestado pelos municípios”.

O órgão destaca que promove ações para reduzir os índices, como a implementação das diretrizes da Rede Cegonha no estado; a implementação da Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil e a implementação de Leitos em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal.

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier