Violência e preconceito nascido a partir do preconceito de raça e renda

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Publicado em 17 de junho de 2018 às 11:27

- Atualizado há um ano

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No intervalo de apenas 48 horas, a Bahia foi cenário de dois casos de repercussão nacional que sintetizam, de maneira clara, a violência originada pelo preconceito de cor e de classe social. Na última quarta-feira, a vítima dessa chaga foi o ator Leno Sacramento, do Bando de Teatro do Olodum. 

Crítico contumaz do que pesquisadores de diversas áreas das Ciências Humanas classificam como “cultura do racismo”, Leno conheceu na pele, literalmente, tudo aquilo que costuma denunciar há anos nos palcos. Passeava de bicicleta com um amigo pelo Centro de Salvador, quando foi abordado por policiais. Mesmo sem esboçar qualquer tipo de reação, foi baleado na perna por um deles.

A justificativa apresentada pela polícia  foi tão dolorida quanto o próprio tiro: o ator teria sido confundido com um assaltante. Sobre o porquê da confusão de identidades, nenhuma palavra digna de nota saiu da boca das autoridades. Nem precisava. 

Afinal, o que faria um agente da Segurança Pública ver, de imediato, o bandido onde estava o artista, a não ser a cor da pele, o cabelo e o jeito simples de se vestir. Ou seja, Leno sofreu a dupla violência nascida a partir do preconceito de raça e de renda, vivenciada diariamente pelos negros pobres do Brasil. 

Além do sofrimento psicológico, que estigmatiza indíviduos pela etnia e classe social, o ator também foi vítima da violência física como consequência direta do racismo institucionalizado. O que é demonstrado de maneira cabal pelo número de homicídios cometidos contra negros, em comparação com pessoas das demais raças.

Segundo o novo Atlas da Violência, divulgado no início do mês, o índice de assassinatos entre a população negra no Brasil é de 40,2 para cada 100 mil habitantes, contra 16 registrados em outros grupos étnicos. Na Bahia, a taxa é de 52,4  contra 15,6, três vezes maior. De 2006 a 2016, os homicídios de negros no estado cresceram 104%.

Dois dias antes do tiro que atingiu Leno, um vídeo gravado na Bahia ganhou destaque por expor a violência social que acomete a população afrodescendente do país. Nele, o segurança de um shopping da capital tenta impedir um cliente de comprar comida para uma criança pobre e negra que pedia ajuda na praça de alimentação do empreendimento. 

O vídeo exibiu a revolta de clientes que testemunharam a cena e provocou comoção nas redes sociais. Nas imagens, é possível ver a tentativa do segurança de tirar à força a criança, que é protegida a todo instante pelo cliente. Novamente, a ação evidenciou a dupla violência com origem no preconceito de cor e renda, um câncer enraizado no Brasil desde os tempos da escravidão e cultivado veladamente por certos setores da sociedade. 

Apesar do combate sistemático ao preconceito racial, encampado por ativistas e intelectuais, a violência contra a parcela negra e de baixa renda não dá sinais de redução. Os avanços alcançados com políticas de ações afirmativas se mostraram incapazes de mudar o quadro de forma significativa.

A inépcia do poder público em atacar o mal dentro de suas próprias instituições, especialmente, os órgãos de  segurança, torna o problema ainda mais grave. Sobretudo por não impedir que a violência contra os excluídos continue a ser cometida sob o guarda-chuva do Estado, a quem cabe a tarefa de melhorar as condições de vida de cidadãos marginalizados. Sem isso, casos idênticos ao do ator e da criança serão vistos por anos a fio.