Violência reduz tradição da queima do Judas: 'Quem vai fazer para ver só bala para lá e para cá?', diz moradora

Na comunidade da Rua Ferreira Santos, pela primeira vez, em 25 anos, a festa não vai acontecer neste sábado (15). Quem produz os bonecos acredita que o costume está se perdendo entre as novas gerações

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  • Thais Borges

Publicado em 15 de abril de 2017 às 14:17

- Atualizado há um ano

Por mais de 25 anos, a tradição no Sábado de Aleluia na comunidade da Rua Ferreira Santos, nas imediações da Avenida Garibaldi, foi a queima do boneco Judas. No entanto, na manhã deste sábado (15), não havia nenhum tipo de preparativo. Esse ano, pela primeira vez em todo esse tempo, não vai ter a festa do Judas – uma das mais tradicionais de Salvador. O motivo? A violência na região.  

Quem organizava a queima do boneco todos os anos era o líder comunitário Jalmires Bispo, conhecido como Miro. Mas, dessa vez, ele decidiu que não faria mais, devido aos últimos acontecimentos. Assim, também decidiu viajar e passar o feriado no interior do estado, segundo os vizinhos. “O ‘baba de saia’ anteontem (quinta-feira, 13) foi tanta confusão, tanto tiro, que não tem mais condição de fazer mais nada aqui. Tudo porque os meninos da (Rua) Ferreira Santos desceram para a (Rua) Onze (de Agosto), porque não podem descer. O medo dele (Miro) era organizar (o Judas) e acontecer algo ruim”, contou uma moradora que não quis se identificar. 

Tradição em Salvador na Semana Santa, o Baba de Saia, também conhecido como ‘baba do vinho’, envolve homens jogando futebol vestindo roupas femininas. Na sexta-feira (14), um eletricista morreu na Avenida Vasco da Gama, enquanto se preparava para assistir a um Baba do Vinho com a família. Um dos últimos eventos que o líder comunitário Jalmires organizou na Rua Ferreira Santos foi uma parada LGBT local, no fim do ano passado. Na ocasião, segundo moradores da comunidade, teve que enfrentar a violência diretamente: foi espancado por um grupo que estava na festa. Para fazer o teste de som do palco, ele teria pedido que o grupo em questão abaixasse o volume do som de um carro. Diante da negativa, pediu que virassem o carro para o outro lado. O grupo não aceitou e partiu para a briga. 

“Ele era a única pessoa que fazia algo por aqui. Ele corria atrás dos contatos dele, conseguia com políticos. Quando não conseguia, a comunidade se juntava e cada um dava uma parte. Mas agora quem é que vai ter ânimo? Fazer e ver só bala para lá e para cá? Moro aqui há 40 anos e nunca vi isso assim, do jeito que está hoje. Infelizmente, quem fica sem a brincadeira é a população, que não sabe dar valor ao que tem”, lamentou a mulher. Além disso, segundo outro morador ouvido pelo CORREIO, era lá que morava o adolescente Carlos Henrique Santos de Deus, 17 anos, torcedor do Bahia que morreu após o BaxVi no domingo (9). “Não tem clima também. A gente perdeu o nosso colega recentemente. Era um menino bom, que não bulia com ninguém”, disse o homem. O líder comunitário Jalmires Bispo não foi localizado pelo CORREIO. 

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Tradição que está morrendoNa Rua 10 de Novembro, no Pau Miúdo, a venda dos bonecos de Judas estava a todo vapor neste sábado (15). Mesmo assim, o artesão Fernando Dias, 60, acredita que os dois mil Judas vendidos no ano passado terem se tornado uma produção de pouco mais de 1,2 mil bonecos em 2017 dão mostras de que a tradição da Páscoa está se perdendo. Do início da semana até a manhã deste sábado, eles tinham vendido cerca de 700 unidades. “Antes, o que precedia a queima do Judas era a brincadeira. Tinha corrida de saco, ovo na colher, quebra pote... Hoje, a gente não vê mais isso. Inclusive, a queima do Judas acontece 00h. O nosso aqui (na rua) costuma ser 21h, 22h, no máximo, justamente para atrair a criançada. Se elas não conhecerem a tradição, não vão dar continuidade a ela”, lamenta ele, que faz Judas há 50 anos e foi aprendiz do saudoso Florentino Fogueteiro. Morto em 2006, Florentino é considerado, até hoje, um dos mais famosos fabricantes de fogos de artifício de Salvador. 

Os 1,2 mil Judas fabricados por Fernando, pelo colega Jean Neiva, e por outras seis pessoas, começaram a ser produzidos em novembro do ano passado. Com o rosto vermelho, são totalmente preenchidos por bombas – segundo Fernando, de baixa capacidade explosiva. A bomba mais potente fica na região da cabeça do boneco, que costuma ser a última parte a ser destruída. Irmã de Jean, a vendedora Tatiane Neiva, 39, é a responsável por representar o grupo de artesãos na Avenida Barros Reis, onde os Judas ficam expostos nos postes para venda. “Vendemos para políticos, líderes comunitários, associações... Tem bairro que compra 2, 3 bonecos”. 

Segundo Fernando, este ano, a Ribeira foi o bairro que dominou as vendas – só para lá, foram mais de 10 Judas. Mas ainda há também gente de cidades próximas que vai lá comprar – entre os clientes, há moradores de Simões Filho, Camaçari e Mata de São João, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). O preço varia: R$ 250, 270... “Depende do choro (a pechincha do cliente). O choro é livre”, brinca Tatiane. E eles garantem que não batizam os Judas com nomes de políticos. “Até porque os políticos também são nossos clientes”, diz o artesão Fernando, aos risos. Mesmo assim, eles não podem evitar que os outros clientes batizem com os nomes dos políticos. Segundo ele, os mais frequentes são os que andam com nomes envolvidos em escândalos de corrupção. O primeiro lugar de 2017 vai para o presidente Michel Temer (PMDB). “Temer é o primeiro que estão procurando. Apesar de tudo, o Judas ainda é a maneira que muitas pessoas encontram de extravasar”, explica.