Visceral como uma boa canção de blues

Interpretações de Viola Davis e Chadwick Boseman são destaques no filme A Voz Suprema do Blues

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  • Ana Pereira

Publicado em 2 de janeiro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: divulgação

O drama A Voz Suprema do Blues, um dos últimos originais Netflix de 2020, é bem simbólico das contradições do ano – pelo menos no âmbito da arte e da negritude. Se por um lado a gente viu o aumento do interesse pelas produções realizadas e protagonizadas por negros e o acalorado debate  sobre representatividade, lugar de fala e apropriação cultural, também assistimos o racismo e violência reincidentes nos assassinatos de George Floys, nos Estados Unidos, e João Alberto, em Porto Alegre, só para ficar nos dois casos mais midiáticos. 

 O filme é um pouco sobre tudo isto. Com um elenco e uma equipe predominan- temente negros, fala sobre o impacto do racismo, desigualdades e a busca por espaço – no caso na música, através de um recorte na história da cantora américa Ma Rainey (1886-1939), conhecida como a Mãe do Blues. Começando pelos protagonistas Viola Davis (Ma Rainey) e Chadwick Boseman (o trompetista Leeve Green), ambos com atuações hipnotizantes.  

Dirigido por George C. Wolfe, o longa  é uma adaptação da peça homônima do premiado escritor August Wilson (1945-2005), duas vezes vencedor do Prêmio Pulitzer. E  tem produção de Denzel Washington e Todd Black. Todos negros. Denzel e Todd já tinham visitado a contundente obra de Wilson no filme Um Limite Entre Nós, outro texto teatral que fala sobre temas profundos da negritude (2017) e era protagonizado por Danzel e Viola Davis. Os dois filmes têm ainda em comum a opção estética que o aproxima do palco, com muito texto, pouca ação e interpretações um tom acima

O filme se passa basicamente em um dia, durante a gravação de um álbum de cantora nos anos 20, em Chicago, quando ela já uma estrela do blues. E é atravessado por muitas tensões, diálogos difíceis e monólogos fortes. Ma bate de frente com o produtor e o empresário, brancos, para impor sua música visceral. Em determinado momento, ela diz: “Eles não se preocupam comigo, querem apenas minha voz”.  E bate de frente também também com Leeve, ambicioso e talentoso, que quer sua namorada e impor seu próprio estilo.

    Em seu último papel no cinema, Chadwick tem os monólogos mais contundentes da narrativa. Marcado pela dor de ter tido a mãe estuprada e o pai assassinado,  pelas violências cotidianas que fazem dele uma bomba-relógio. Não é um filme fácil, tanto pela forma quando conteúdo, mas muito necessário. E tem ainda a bela trilha assinada por  Branford Marsalis, para lembrar, como diz Viola no documentário sobre os bastidores (também na Netflix) que  os negros “pegam os restos e transformam em algo lindo”. 

   

Bom humor para exorcizar 2020 

   Tracey Ullman interpreta uma uma Rainha Elizabeth irritada com o Brexit (Foto: divulgação) Pra quem não resiste a uma retrospectiva, mas quer algo ácido e bem humorado, a dica é 2020  Nunca Mais (Netflix), dirigido por Charlie Brooker, criador da série Black Mirror. 

Pandemia, fake news, racismo e eleição americana são abordados no falso doc de 70 minutos, que traz personagens como um acadêmico com teorias malucas, uma mulher que se diz uma “cidadã do bem”, mas não passa de uma negacionista racista, e um influenciador digital que só olha para a própria bolha.

O time de especialistas inclui atores como Hugh Grant, que vive  um historiador cheio de teorias malucas;  Lisa Kudrow é a porta-voz presidencial Jeanetta Grace Susan, que nega absolutamente todos os disparates que vêm da Casa Branca;  Tracey Ullman, que interpreta uma uma Rainha Elizabeth irritada com o Brexit ; e Samuel L. Jackson, o jornalista Dash Bracket, que fala para a câmera do jornal em que trabalha, às moscas.   

 

Outra retrospectiva que vale a pena ser conferida é a do Porta dos Fundos - no canal do grupo no Youtyube. Num ritmo frenético, Rafael Infante narrou os principais episódios que aconteceram neste ano, mês a mês. Infante, no personagem de Carlinhos Avelar, cita desde os incêndios na Austrália até a polêmica envolvendo Arthur Aguiar, passando pela pandemia de covid-19 os escândalos políticos brasileiros.  Quase sem respirar.

George Orwell revigorado

Lançado em 1949, o clássico 1984, de George Orwell, foi o terceiro livro mais vendido do ano pela Amazon Brasil. O que pode se explicar facilmente pelas novas edições da obra do autor – que este mês entra em domínio público. Só a Companhia das Letras lançou quatro publicações, por três diferentes selos. Entre elas, uma nova edição de A Revolução dos Bichos (agora traduzida como A Fazenda dos Animais) com rica fortuna crítica, e também uma versão inédita em quadrinhos de 1984.

A HQ é um trabalho impressionante do artista paulistano Fido Nesti. Feito com nanquim e colorizado digitalmente, o livro também usa a experiência pessoal do quadrinista em Londres, onde morou por um ano e onde se dá a trama de 1984. Ele explica que buscou a visão de Orwell quando o livro foi escrito, em 1948, e não aquele em que a obra se passa.

"Eu li o livro pela primeira vez em 1984 mesmo", conta Nesti. "Não lembro exatamente o que me ligava ao livro na época, era um finalzinho da ditadura militar, lembro das capas de jornais com a cara dos militares. A leitura meio que soou um alarme em mim, para eu ficar mais esperto sobre o que estava acontecendo." Foram um ano e oito meses de trabalho para Nesti, que releu o livro em 2018 e sentiu que os paralelos do livro com a realidade se fortaleceram nos últimos 36 anos.  

1984  - Capa da edição em HQ Quadrinhos da Quadrinhos na Cia (224 págs., R$84,90 ou R$ 34,90 o digital). Os desenhos são assinado pelo paulista Fido Nest. Tem também a versão do selo Penguin, por R$ 24,90 e R$ 13, 90 (digital).

A Fazenda dos Animais  Ganhou também duas edições, com tradução de Paulo Henriques Britto. A primeira, pela Companhia das Letras (248 pág., R$ 89,90 e R$ 39,90) e a segunda, pela Peguin, (136 págs., R$19,90 e R$13,90).