'Vivemos num dos países mais violentos para crianças', diz Elisama Santos

Destaque quando o assunto é educação parental, baiana lança livro Educação Não Violenta em Salvador nesta sexta (15)

Publicado em 11 de março de 2019 às 07:00

- Atualizado há um ano

Pouco tempo atrás ninguém estranhava ouvir que dar umas palmadas ou colocar a criança de castigo era a solução para que ela pudesse aprender e passasse a se comportar adequadamente. Os pais e até mesmo os professores estavam autorizados a usar cintos e palmatórias para punir os mais desobedientes. Tinha até o castigo de ajoelhar no milho cru.  Se hoje essa realidade soa absurda pelas graves consequências físicas e psicológicas que pode gerar, há quem ainda considere a punição e a violência como formas legítimas de educar. “ Vivemos num país que é um dos mais violentos com crianças no mundo”, alerta a educadora parental Elisama Santos. 

Mãe de Miguel, 6 anos, e de Helena, 4, a baiana, de Feira de Santana, começou a se interessar pelo assunto quando estava no final da gestação de seu filho mais velho. “O despertar para tudo isso foi quando vi uma mãe batendo no filho no corredor do supermercado. Em vez de olhar para o adulto, eu olhei nos olhos daquela criança e toda a minha infância veio à minha mente. Naquele momento eu decidi que ia educar meu filho sem bater, mesmo sem noção do nível de dificuldade que isso ia ter”, relembra.  Elisama largou o Direito e começou a estudar sobre infância. Hoje, aos 33 anos, tem três livros publicados. O mais recente deles, “Educação Não Violenta: Como Estimular Autoestima, Autonomia, Autodisciplina e Resiliência em Você e nas Crianças”, será lançado nesta sexta (15), às 19h, na Livraria Leitura, do Shopping Bela Vista.  Na entrevista a seguir, Elisama reconhece que os pais estão sempre tentando fazer o melhor para os filhos, mas ressalta que eles costumam negligenciar a educação sentimental, mesmo porque não aprenderam a lidar com seus próprios sentimentos da melhor forma. “Dizemos para a criança que ela não pode ser agressiva, mas batemos nela. A gente diz que ela não pode bater, mas o que ela faz com aquela raiva, com aquela boca seca, com aquele coração acelerado?”, questiona.  Você acaba de lançar seu teceiro livro sobre educação parental. Além disso, é bastante ativa nas redes sociais, onde sempre publica vídeos e textos relacionados a esse assunto. Quando tudo começou? Até a gravidez do meu primeiro filho, eu ainda acreditava que criança precisava de palmada, de castigo. Reproduzia o que ouvia a vida inteira. Fui educada com agressões físicas e psicologicas. Há pouco tempo atrás até professores podiam castigar as crianças. Vivemos num país que é um dos mais violentos para crianças no mundo. Durante minha gravidez, li muito sobre maternidade, sobre educação de crianças. Entrei num processo de desconstrução de várias coisas. Uma vez vi uma mãe batendo no filho no mercado, e naquele momento eu olhei para a criança, para o olho dela, e lembrei do quanto eu tinha medo, do quanto eu queria ir embora quando apanhava. Me dei conta que não queria isso na relação com os meus filhos. Nos esquecemos que crianças são seres humanos em desenvolvimento e que é normal que elas tenham mais descontrole que a gente. Elisama, 33, ao lado dos filhos Miguel, 6, e Helena, 3. Família mora em Feira de Santana (Foto: Hosana Evarini/ Divulgação) E porque esse esquecimento? Nós não estudamos pra isso, para sermos pais. Quando vamos ter filhos nos preocupamos com enxoval, com pediatra, e esquecemos como é educar, do exercício que é isso. Tudo que fazemos hoje como nossos filhos reflete em quem eles serão no futuro. Freud dizia que nós vivemos a vida adulta nos curando dos doze primeiros anos de vida. Você acabou abandonando o Direito para mergulhar nessa área. Como foi essa mudança? Comecei tudo de forma bem depretensiosa, colocando no meu perfil pessoal os diálogos que tinha com meus filhos em casa. As pessoas começaram a dizer que eu me comunicava de uma forma diferente e passaram a demandar que eu compartilhasse mais coisas. Em 2015, lancei uma página e de lá para cá conquistei mais de 130 mil seguidores nas rede sociais. A mudança de área foi encarada como uma loucura por quem me conhecia. Eu estava em uma ótima fase da carreira, só que eu não me sentia bem advogando, não era mais minha cara. Eu acreditava que tinha outra missão, que era justamente falar do que eu já estava falando no Facebook. Aquela era a minha forma de contribuir para um mundo melhor. Hoje colho os resultados dessa decisão. Estou com a agenda cheia até junho, não posso aceitar mais nada [risos]. Qual o maior entrave para pôr em prática tudo isso? A gente sabe enquanto adultos que somos analfabetos emocionais. Essa educação que sempre focou no mundo exterior e profissionalizante, esqueceu de focar no sentimento. A gente ensina a criança o que é uma caneta, mas não ensina o que é a tristeza nem como lidar com isso. Dizemos para a criança que ela não pode ser agressiva, mas batemos nela. Dizemos que ela que não pode bater, mas o que ela vai fazer com aquela raiva, com aquela boca seca, com aquele coração acelerado? Nossa educação é muito focada no desenvolvimento lógico-matemático, mas não existe nenhum preparo emocional.Flavia Azevedo, colunista do CORREIO, uma vez escreveu que bater em criança nunca foi para educar e só demonstra nossa covardia. No texto, ela até dizia que se hoje o homem bater em mulher é algo absurdo, é ainda mais absurdo a gente pensar que um adulto pode/deve bater em uma criança - que não tem chance nenhuma de escapar do seu agressor. É chocante você achar normal isso, há uma gravidade tão grande nisso! A criança não vai odiar os pais o tempo inteiro porque levou palmadas ou foi castigada. Na impossibilidade de não amar os pais, porque depende deles para sobreviver, a criança passa a não amar a si mesma. As consequências negativas são enormes. Quando você bate, mistura conceitos que nunca deveriam andar juntos: amor e violência. A gente vê tanto relacionamento abusivo, será que ao fazer isso não estamos confundindo a cabeça das nossas crianças? Além do mais, isso incentiva muito a mentira. A maioria de nossos pais sabem recortes da nossa adolescência. A punição incentiva a mentira porque é um controle falso. Estabelecer uma relação de confiança não quer dizer que os filhos vão poder fazer tudo. Meus filhos sabem que eu vou ficar muito brava se eles fizerem algo que eu não gosto ou desaconcelhei, eles chegam a dizer isso quando me contam o que fizeram. Eu confirmo, digo que fiquei furiosa, peço um tempo e a gente conversa depois, respeitosamente, sobre como vamos agir. Isso não parece nada fácil...  É muito difícil, porque você tem de aprender a desenvolver isso em você e na criança. Se eu não perceber que hoje estou mais impaciente por conta do trabalho ou do casamento, eu tendo a descontar isso na criança. Pode fazer o exercício. Você quer ter a mesma relação com seus filhos que a que você tem com seus pais? A maioria de nós, inclusive aqueles que dizem que não teve problema nenhum por apanhar e que até mereceu, vai dizer que não quer a mesmíssima relação. Os filhos não vão gostar do que os pais fazem o tempo inteiro. Quando meus filhos estão contrariados comigo eles dizem coisas do tipo “você é muito chata” ou “você não é mais a minha mãe”. O que muda? É que eu não falo as mesmas coisas que ouvia de meus pais, não digo para eles engulirem o choro, não coloco de castigo, não digo para calar a boca. Eu digo: “eu sei que você está chateado, mas ache outra forma de falar, você sabe que eu não gosto dessa”. Isso não quer dizer que eu não seja uma mãe que não reclama, que faz tudo que o filho quer. Minha fala não é mansa. é firme, assim como estou conversando contigo. Eu não sou a idealização da pessoa calma, doce e tranquila. O autoconhecimento também me proporcionou me aceitar dessa forma, eu não preciso falar diferente e não estou errada por falar desse modo. 

Visualizar esta foto no Instagram.

Eu gosto de jogar dominó e buraco. Sério, se tiver oportunidade, sento na praça com os tiozinhos aposentados pra jogar. Talvez porque era algo que fazíamos muito na nossa casa em minha infância. Uma das coisas que aprendi nessas maratonas, foi que, quando o meu parceiro fazia uma jogada errada, em vez de gastar energia brigando e reclamando com ele, meu esforço deveria ser pra pensar em como recuperar o jogo após a pisada na bola. Continuar irritada e reclamando era garantia de mais inúmeras jogadas impensadas: minhas e dele. Agora pára pra pensar na nossa relação com os nossos filhos. A gente aprendeu que tem que punir, brigar, pôr de castigo, envergonhar. Em vez de pensar nas jogadas necessárias pra corrigir o erro e pensar no que deve ser feito pra que não se repita, seguimos garantindo uma sequência de atos guiados pela raiva, frustração e rancor. Porque, me diga, quantas vezes, após apanhar ou ficar de castigo, você pensou :" Qual a forma mais construtiva de lidar com a situação quando ela ocorrer novamente?". Não sei você, mas parando pra refletir, as vezes que pensei assim, somam um total de zero. Eu achava que meus pais eram injustos e ruins e queria me vingar. E pensava que, da próxima vez, tomaria mais cuidado pra que eles não descobrissem o meu erro. Quem nunca?  Quando a gente foca na punição, deixa de preparar os filhos para novas situações semelhantes. Deixa de desenvolver a responsabilidade e apenas estimula o rancor e a culpa, que, convenhamos, não são bons guias pro comportamento de ninguém. E se a gente virar a chave e começar a pensar na solução? Se, assim como um bom jogador, a gente pensar nas próximas jogadas como chances de corrigir o erro e aprender com ele? E se a gente abandonasse a visão que nos coloca em pólo oposto dos filhos e passasse a vê-los como parceiros nessa jornada da construção de pessoas melhores pro mundo e de um mundo melhor para as pessoas? E se, em vez de pensar em "como eu devo punir pra que ele entenda que é errado agir assim?" a gente começar a pensar "Como eu devo ajudá-lo a agir de maneira mais responsável no futuro?". Percebe a sutil e importante diferença entre as duas formas de pensar? ????Educação não violenta

Uma publicação compartilhada por Elisama Santos (@elisamasantosc) em

Muita gente acredita que uma educação não violenta, sem palmadas, "só na base da conversa",  é acostumar mal a criança. Muita gente fala isso, e eu acho ótimo. Tudo o que eu quero é que meu filho se acostume a ser bem tratado e não aceite nada menos que isso na vida. Porque assim estamos preparando nossos filhos a enxergar de longe relacionamentos abusivos e falar “opa, isso aqui não é pra mim não!”. A partir do momento em que eu ensino meu filho ou minha filha a estabelecerem os limites deles com respeito, eu ensino a eles a não engolir sapo para ser agradável ou por medo de ser deixado pelos outros. Eu ensino a eles a saber que merecem mais da vida. Salvador é quarta cidade a receber lançamento, que já passou por São Paulo, Rio e Curitiba (Foto: Vanessa Vólaro/ Divulgação) É sempre essa dupla relação, não é? Coisa que está clara no subtítulo do seu livro, que fala em como estimular autoestima, confiança, risiliência tanto nos adultos quanto nas crianças. Nossa missão enquanto pais é lidar com essas características do filho, tanto as bonitinhas, que a gente gosta e compartilha no Instagram, quanto a que a gente não curte tanto. Se tivéssemos lidando desde cedo com as contrariedades, nossa postura em muitas situações seria menos reativa. A gente aprendeu um bocado de coisa sobre como educar pelo exemplo que tivemos dos nossos pais, quando crianças. Vamos reproduzindo isso, sem perceber que a nossa sociedade está como está porque nada disso funciona. O mundo que a gente foi criado não existe mais. Não existe nem para gente, quanto mais para nossos filhos. 

Você faz workshops por todo Brasil, presta consultorias e deve receber muitas mensagens de adultos buscando pôr em prática essa educação não violenta. Algum deles já chegou até você dizendo explicitamente que essa parece ser mais uma demanda de uma vida tão corrida, que acaba por sobrecarregá-los? Quando você começa a aplicar, a investir nisso, e educar a partir desse autoconhecimento, você percebe que não é mais demanda. É algo que te liberta. O que acontece é que alguns pratos daquele seu malabarismo vão começar a cair no chão. Tem muita coisa ali que não é para você, que você faz po conta dos outros. Quando você alcança esse autoconhecimento, você passa por fases turbulentas de forma menos dolorosa. Digo isso por experiência própria também. Talvez o ano passado tenha sido o ano mais difícil da minha vida. Tive de estar com minha mãe, que estava lutando contra um câncer, meu marido ficou desempregado. Se não fosse essa responsabilidade com as coisas que sinto, eu teria surtado, porque vira uma bola de neve. A criança também se irrita com toda essa conturbação, demanda de você mais energia, sendo que você não está com muita; a raiva de um alimenta a raiva de outro. Então, essa educação é mais que necessária nos momentos de caos.

Falando nisso, tem muitos pais que dão um celular para o filho para que ele passe a demandar menos presença e fique quieto por alguns minutos. Observo que são esses mesmos pais que depois reclamam de que as crianças não querem brincar, fazer nada em casa... A primeira coisa é o exemplo, não adianta passar o dia inteiro com o celular na mão, porque a criança aprende com isso. Tirar a TV, o tablet, o celular, significa que você tem que dar assistência. As mídias são uma babá eficiente, mas elas cobram esse preço. Há crianças muito estressadas e estimuladas, com problemas físicos, decorrentes disso. Num mundo ideal, crianças não teriam acesso a nada disso. Só que vivemos num mundo real, os pais têm muitas demandas. Sempre pergunto aos pais que se enquadram nesse exemplo que você mencionou, quantas horas os filhos deles passam em telas. Alguns, chegam a passar três horas na TV, no computador, no tablet. É muito tempo! É sinal de que é preciso estar mais disponível para as crianças. Quando vou a um restaurante ou vou fazer uma viagem de avião com meus filhos, eu levo canetinhas, papel, revistas e penso em algumas brincadeiras que possam ajudá-los a lidar com aquela espera, porque essa é uma missão de pai e mãe. 

O quê mais você prioriza na educação de sus filhos? O fato de muitos de nós morarmos em um apartamento hoje, não mudou as demandas das crianças. Ela continuam precisando de movimento e lidando de uma forma diferente com o tempo que nós. Meus filhos não veem TV diariamente, a TV passa o dia inteiro desligada aqui. Quando eles passam o fim de semana expostos a muita tela, eu percebo a mudança de comportamento rapidamente. Sem perceber, os pais estão permitindo que a criança passe o dia todo agitada por conta desses estímulos. Daí a dificuldade de muita criança dormir cedo. O ritmo da casa tem que acompanhar essa demana. Meus filhos dormem no máximo 20h, mas para isso começo a prepará-los às 18h, desligo todas as luzes da casa. Só que o acontece é que a maioria dos pais chega às 19h, vai brincar, jantar, então a criança vai dormir 22h. Se eu quero que meu filho durma às 20h, minha rotina tem que mudar. O que é muito difícil porque temos nossas demandas profissionais e somos muito imediatistas. Sentar com a criança é cansativo, conversar com ela também.  A gente está sempre pensando no hoje, mas a gente está educando para  o futuro. Essas crianças vão se tornar adultos e vãos passar a maior parte da vida longe de nós. Tem dias que a gente não está a fim, que quer descansar. Ontem passei 2h30 com meus filhos fazendo exercíicios, tinha inúmeras demandas, estava cansada. Só que as implicações disso tudo vão muito além de mim e a menor parte da vida deles eles passarão ao meu lado. A gente está achando cebola picada no mercado, a gente não quer ter trabalho. 

LEIA TAMBÉM  Guia prático onde a disciplina é ensinada de forma respeitosa e encorajadora, tanto para as crianças como para os adultos Método ressalta importância das interações cotidianas no amadurecimento da inteligência emocional das crianças Livro mostra como lidar com as tempestades emocionais, redirecionando o comportamento para a direção pretendida De onde vem a agressividade parental? Por que as birras acontecem? Como corrigir os filhos adequadamente? Criador de uma das mais importantes redes sobre paternidade na web mostra como o colo e o amor entre pais e filhos transformam