Wagner Moura fala sobre estreia polêmica do filme Marighella

Em entrevista ao CORREIO, ator e diretor revela que Seu Jorge não era primeira opção para o papel

  • Foto do(a) author(a) Laura Fernades
  • Laura Fernades

Publicado em 19 de novembro de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação
Adriana Esteves está no elenco ao lado de Seu Jorge

A história é controversa. A fama, intensa. “Cuidado, que o Marighella é valente”. A frase dita por um policial e descrita na biografia Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (Companhia das Letras | 2012), dá uma dimensão de quem foi Carlos Marighella (1911-1969), deputado federal, militante comunista e fundador de um grupo armado de oposição à ditadura militar, em 1969.

Figura marcante na história do Brasil, o guerrilheiro que correu o mundo e virou tema de artigos do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) terá sua trajetória contada no cinema a partir desta quinta-feira (19). Com direção do ator baiano Wagner Moura, Marighella – O Filme terá pré-estreia apenas em Salvador, de quinta (19) a quarta-feira (25), no Espaço Itaú de Cinema Glauber Rocha.

“Todos os filmes que eu faço, sempre exijo uma pré-estreia em Salvador. O que faz todo sentido já que Salvador é, percentualmente, a cidade que mais prestigia o cinema nacional”, diz Wagner. Com estreia marcada para 14 de abril de 2021, Marighella é seu primeiro trabalho de direção e traz Seu Jorge no papel do guerrilheiro que virou o principal inimigo da ditadura militar brasileira.

Em entrevista ao CORREIO, direto de Los Angeles, nos Estados Unidos, onde mora, Wagner fala sobre as polêmicas em torno do cancelamento da estreia de Marighella no dia 20 de novembro de 2019, mês em que completaria 50 anos de morte. Além disso, revela que Seu Jorge – com quem atuou em Tropa de Elite 2 – não foi sua primeira opção para o papel principal. 

No papo, o ator e diretor também lembra de curiosidades sobre sua terra natal: “Carlos Marighella é hoje o nome da escola que era a zona eleitoral onde eu votava quando morava em Salvador, no Stiep”. E fala sobre o legado do protagonista que comandava um grupo de jovens guerrilheiros e foi assassinado em uma emboscada.

“Marighella, com seu carisma, sua empatia para com os mais vulneráveis, sua coragem, (...) catalisava e continua catalisando o sentimento dos que não se conformam com injustiça, com desigualdade, com genocídio e com totalitarismos”, afirma o diretor. Além do filme, que teve cerca de 30 exibições em países dos cinco continentes, Wagner revela futuros projetos como episódios para a série Narcos Mexico. Confira.

[[galeria]]

Acompanhamos a dificuldade de lançamento de Marighella no Brasil. A produtora chegou a soltar um comunicado falando que não conseguiu cumprir os trâmites exigidos pela Ancine. Conta um pouco sobre o que fez para contornar os entraves e sobre seu sentimento em relação a isso.

A relação do atual Governo com a cultura prescinde de maiores comentários. A cultura, assim como a questão ambiental, racial e de igualdade de direitos é alvo preferencial do projeto de destruição bolsonarista. E a maneira escolhida para operar esses aniquilamentos foi muito maquiavélica, porque o IBAMA, a FUNAI, A Fundação Palmares, Ministério do Meio-Ambiente, o Ministério dos Direitos Humanos não foram extintos; mas eles colocaram lá dentro antíteses das naturezas desses órgãos. É uma corrosão interna, muito mais cruel do que a própria extinção. O Ministério da Cultura, eles extinguiram mesmo, mas deixaram lá uma Secretaria ligada ao Turismo, que é mais um órgão anacrônico de vigília ideológica e censura, do que de fomento cultural.

A Ancine acabou. Devem estar tentando entender uma estratégia com verniz de legalidade para desviar a totalidade dos recursos do Fundo Setorial para outra área, antes de darem o tiro de misericórdia na Ancine. Esse governo, formado por leitores de Brilhante Ustra e Olavo de Carvalho, vê a cultura como máquina de propaganda ideológica. Eles não têm a mais vaga ideia da importância da cultura para o desenvolvimento de uma nação. Mas são tão obtusos e vingativos que ignoram a potência econômica que é o setor cultural. Bolsonaro se deu ao trabalho de gravar um vídeo falando mal de mim e do meu filme, empoderando seus seguidores no ódio contra artistas.

Eu já expliquei em outras entrevistas todos os pormenores da censura operada pela Ancine para impedir nossa estreia ano passado. De um modo geral, foram usados entraves burocráticos que tornaram a estreia impossível. Nós, que havíamos sido contemplados com um edital do FSA para lançar Marighella em 2019, tivemos que abrir mão de uma verba à qual tínhamos direito, para, mesmo na marra, poder ter o filme nos cinemas em 2020. Mas aí veio a pandemia. A data que havíamos escolhido no ano passado era justamente essa da Semana da Consciência Negra. 

O ano de 2019 ficou marcado pelos 50 anos da morte de Marighella. Em sua opinião, porque essa luta encabeçada por ele continua tão viva?

A nossa história sempre foi contada pelo ponto de vista do conquistador, do europeu, do homem branco, dos poderosos, das elites que seguem mandando no país. Eu sempre fui fascinado pelas muitas lutas de resistência a esse domínio, lutas essas que, de um modo geral, foram apagadas ou mal contadas nos nossos livros de história. Desde a resistência dos indígenas aos portugueses e dos africanos à escravidão; Marighella está ligado em sua ancestralidade à Revolta dos Malês em Salvador, passando por Canudos, até os movimentos sindicais e greves nas grandes fábricas, à luta dos trabalhadores rurais por terra. Os que resistiram à ditadura militar de 64 estão muito próximos a mim, que nasci em 76, mas ao mesmo tempo, são uma geração muito diferente da minha, do ponto de vista comportamental.

Eu cresci nos estertores da ditadura, na abertura, com a Constituição de 88, na redemocratização e na promessa de um Brasil mais justo e democrático. Os jovens de hoje vivem esse momento distópico de um governo com tendencia totalitária, nostálgico de ditadores e torturadores, agravador da crise climática mundial, multiplicador dos efeitos mortais da pandemia; esses jovens são muito mais parecidos aos que se uniram a Marighella no final dos anos 60. Marighella, com seu carisma, empatia para com os mais vulneráveis, coragem, cultura, liderança e história política pré-64, catalisava e continua catalisando o sentimento dos que não se conformam com injustiça, desigualdade, genocídio e com totalitarismos.Não é à toa que arrancaram Marighella da nossa história, pois seu exemplo é nocivo à narrativa do status quo.  Por que a escolha de Seu Jorge para o papel principal?

Minha primeira opção para Marighella foi o Mano Brown, dos Racionais MCs. Nós chegamos a ensaiar por mais de um mês com ele. E ele estava indo muito bem. Brown encarna o espirito de Marighella como poucos. O poeta guerrilheiro. Mas aquele 2017 foi o ano em que os Racionais estavam fazendo seus shows de despedida antes da parada que deram. Os shows iam até muito tarde e nossos ensaios exigiam muito, sobretudo do protagonista. Eu e Brown chegamos à conclusão de que aquela rotina era impossível para qualquer ser humano.

Cheguei a fazer muitos testes depois da saída dele. Até que me lembrei de Seu Jorge, que é possivelmente a pessoa mais talentosa que eu conheço. Ele pegou o barco andando, venceu todas as dificuldades e entregou uma atuação simplesmente extraordinária, reconhecida com prêmios de melhor ator na Itália e na Índia. 

Qual é a importância de Salvador receber essa pré-estreia nacional? E como será a estreia?

Tudo que eu faço, eu penso primeiro no que as pessoas vão achar em Salvador. Todos os filmes que eu faço, eu sempre exijo uma pre- estreia em Salvador, o que faz todo sentido, já que Salvador é, percentualmente, a cidade que mais prestigia o cinema nacional. E essa é a terra de Carlos Marighella, que se criou na Baixa dos Sapateiros. Aqui vive seu filho Carlinhos, que ainda não viu o filme. E nosso filme afirma algo importante: Marighella era um homem negro, neto de sudaneses escravizados. E Salvador é a cidade brasileira com mais afro-descendentes. Nossa data de estreia censurada no ano passado havia sido essa, 20 de Novembro, dias depois do aniversário de 50 anos de morte de Marighella e Dia da Consciência Negra. Nosso filme agora tem data marcada para 14 de abril de 2021, nos cinemas

O que seu trabalho como ator trouxe de experiência para a direção e o que foi mais desafiador na estreia como diretor?

A minha experiencia como diretor é pequena. Vejo tudo com os olhos de um ator. Filmo como gosto de ser filmado quando estou atuando. Tive muito prazer em trabalhar com os atores do filme e com eles aprendi muito sobre atuação. Eu acho que atuar é muito mais difícil que dirigir. No Marighella eu tive a melhor equipe, os melhores atores e um roteiro sólido, trabalhado por muitos anos. Estar no set foi um prazer. O difícil foi lidar com o que acontecia fora dele, a falta de grana, os boicotes, o ódio que o filme despertou em alguns. O resto foi só prazer. 

Qual é o principal ensinamento que Marighella deixa para nós?

A narrativa de que as lutas de resistência, em especial à ditadura militar, foram derrotadas nunca me convenceu. O que é ser derrotado? Marighella estava desarmado no interior de um carro quando foi assassinado por dezenas de agentes da ditadura. Hoje, com todas as tentativas de apagamento de sua história, todas as mentiras a seu respeito, estamos aqui debatendo seu legado na luta pela democracia.

Quais os nomes dos que o assassinaram e torturaram? De que derrota estamos falando? Canudos foi derrotada? Tiradentes foi derrotado? Os Malês? Os Alfaiates? Há lutas que são muito maiores do que as vitórias ou derrotas daquele momento. Carlos Marighella é hoje o nome da escola que era a zona eleitoral onde eu votava quando morava em Salvador, no Stiep. Na minha época, a escola se chamava Garrastazu Médice. Os alunos da escola decidiram mudar o nome para Carlos Marighella. Quem foi derrotado?

Quais projetos você está tocando, além de Marighella? 

Eu agora estou editando dois episódios que dirigi para a nova temporada de Narcos México. Estou produzindo um filme com Kleber Mendonça Filho e desenvolvendo três projetos de minisséries junto com Sérgio Machado.

Serviço Exibição de Marighella - O Filme no Espaço Itaú de Cinema Glauber Rocha (Praça Castro Alves) Sala 1: 16h30 | 19h30