Rogéria sobre o Pelourinho: "descia a ladeira pegando geral"

Frase foi dita ao CORREIO, no ano passado, pela travesti que será enterrada nesta quarta-feira (6), no Rio

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Publicado em 6 de setembro de 2017 às 06:05

- Atualizado há um ano

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Espetáculo Divinas Divas mostra a primeira geração de artistas travestis: Brigitte de Búzios, Camille K, Divina Valéria, Rogéria, Jane Di Castro, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos e Marquesa por Divulgação

Ela adorava descer a ladeira do Pelourinho “pegando geral nos anos 70, sobretudo os negões”. “Eu fazia a gringa”, contou a bem-humorada atriz transformista Rogéria, na última entrevista que deu ao jornal CORREIO, em outubro do ano passado. “Baiano é muito sexy”, justificou ao jornalista Hagamenon Brito, sem esconder sua preferência. Batizada Astolfo Barroso Pinto, a atriz morreu na noite de segunda-feira (5) como Rogéria, 74 anos, a “travesti da família brasileira”, o que sempre dizia com orgulho.

Vítima de um choque séptico provocado por uma infecção urinária, Rogéria foi velada no Teatro João Caetano, no Centro do Rio de Janeiro, e será enterrada nesta quarta (6), na cidade de Cantagalo, onde nasceu. “Adeus, Rogéria! Minha querida amiga e irmã!”, lamentou a atriz e cantora Divina Valéria, 72 anos, que ao lado de Rogéria e outras artistas enfrentou a repressão da ditadura militar, na década de 1960, e marcou a primeira geração de travestis do Brasil.

“Os holofotes se apagaram, partiu uma grande estrela que cumpriu com dignidade sua agenda na terra, nos deixando numa tristeza dolorosa”, também lamentou a atriz transformista Jane Di Castro, 67, sobre a amiga que estava internada desde o dia 8 de agosto. “Nos conhecemos com 16 anos de idade. Convivemos muito no palco e na vida. Um dia nos encontraremos e cantaremos como sempre. La Vien Rose. Adeus, Rogéria!”, completou Jane.

Tigre e leoa Sempre com um largo sorriso no rosto, Rogéria foi lembrada nas redes sociais como uma pessoa generosa e carinhosa. A dançarina, atriz e cantora Rita Cadillac, por exemplo, agradeceu o aprendizado que teve com a artista que começou a carreira como maquiador de personalidades como Elis Regina (1945-1982), Fernanda Montenegro, Bibi Ferreira e Angela Maria, até visitar Paris e assumir sua identidade feminina de vez.

“Me ensinou a ser mulher, maquilar, andar de salto, a ser sexy, vc fez muitas vezes o papel da mãe que não tive. (...) Que Deus ilumine seu novo palco (...). Fique em paz, desta filha que te ama muito. Obrigada”, postou Rita Cadillac. Já a atriz Lúcia Veríssimo, em seu Twitter, compartilhou uma história sobre o dia em que Rogéria a protegeu do ataque de um homem que passou dos limites, quando tinha 19 anos.

“Vi aquela linda mulher, em cima de um salto muito alto e vestido longo, se transformar num imenso tigre de voz muito grossa a bradar, fala comigo como homem, partindo pra cima do cara com uma voracidade que até a mim causou temor. Esse machista babaca que a esse momento mantinha meu braço preso a sua mão, me largou imediatamente, enfiou a viola no saco e fugiu a toda velocidade”, narrou.

 “Eu me apaixonei prontamente por essa figura forte, linda, autêntica. Totalmente verdadeira e extremamente protetora dos seus. Ela me protegeu por anos nas andanças noturnas que minha curiosidade de jovem me levava”, agradeceu Lúcia. “Essa leoa/tigre jamais saiu do meu coração onde a guardei com muito amor, respeito e admiração”, completou, sobre a artista que nunca escondeu seu amor pelos aspectos femininos e masculinos do seu corpo.

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PeruNo documentário Divinas Divas, dirigido pela atriz Leandra Leal, Rogéria contou como driblou a pressão pela mudança de sexo, já que sempre esteve satisfeita com seu corpo. O assunto também é abordado na biografia Rogéria – Uma Mulher e Mais um Pouco (Estação Brasil | R$ 44,90 | 271 páginas), lançada ano passado com a assinatura do escritor, economista e amigo Marcio Paschoal.

“Tenho o melhor de dois mundos (risos) e ainda vou mais rápido ao banheiro, porque o banheiro masculino não tem filas grandes como o das mulheres. Jamais seria um transexual, porque gosto de ser Astolfo e não cortaria meu peru por nada. E depois não existe isso de se criar uma buceta com uma operação – ou se nasce mulher ou não”, disse com seu jeitão ao CORREIO, na época do lançamento do livro.

Vaidosa e performática, fã da atriz americana Marilyn Monroe (1926-1962), Rogéria acumulou papéis em 12 espetáculos de teatro, 13 filmes e seis novelas da Globo, entre elas Tieta (1999), cujo papel foi feito especialmente para a divina diva. “Rogéria: aquele menino que sambava na porta do Bola Preta e sabia como ninguém correr da polícia. Meu querido amigo, saudades”, disse Aguinaldo Silva, autor de Tieta.

“Foi uma pioneira. Conseguiu ser famosa num mundo preconceituoso. Eu a conheci pessoalmente e garanto, tinha o brilho da estrela que sempre foi. Viva Rogéria!”, elogiou o também autor de novelas Walcyr Carrasco, sobre a artista que questionou padrões e enfrentou preconceitos ao falar em alto e bom tom: “Meu nome é Astolfo Barroso Pinto, mas pode me chamar de Rogéria”.

Em sua luta, Rogéria teve papel importante ao contestar a associação direta entre o travesti e a prostituição e fez parte do time de travestis que abriu as portas para os homens vestidos de mulher viverem com mais dignidade no Brasil. “Ah, Rogéria! Logo agora. Obrigada, flor”, agradeceu a cartunista transgênero Laerte Coutinho, em suas redes sociais.