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No trabalho, cantora fala de racismo e pertencimento e dialoga com sons da musicalidade da diáspora negra
Da Redação
Publicado em 27 de setembro de 2017 às 06:05
- Atualizado há um ano
Foram os filmes protagonizados por negros americanos e exibidos na Sessão da Tarde que deram a Xenia França a certeza de que era preciso ganhar o mundo quando ela ainda era muito pequena. “Minha mãe saia para trabalhar e eu ficava em casa sozinha ouvindo rádio ou vendo TV. Tinha um fetiche por morar nos EUA desde criança, e também, sempre fui muito apaixonada por música”, lembra a cantora baiana de 30 anos, nascida em Candeias, e que tem chamado atenção na cena nacional. Xenia saiu de Candeias na adolescência, para ser modelo em São Paulo (Foto: Tomas Arthuzzi/divulgação) O fascínio era justificado. Afinal, aqueles eram os únicos momentos em que ela conseguia ver pessoas como ela, negras, na TV. Nas rádios, vozes como as de Michael Jackson, Bob Marley e Lauryn Hill também exerciam muito encanto. E tinha também as referências locais. “Pra ser a pessoa que eu sou hoje, eu tinha que nascer onde nasci. Na minha infância, a gente ouvia a música do Ilê e do Olodum na rádio. Por mais que a gente não tivesse consciência, essas músicas diziam o que a gente podia ser, era orgulho puro. Essas coisas em uma criança, com mente fresca, causam um impacto tremendo”, acredita. Na adolescência, depois de tanto ouvir as pessoas dizerem que ela tinha de ser aventurar na carreira de modelo, Xenia decidiu se inscrever em um concurso de beleza da revista Raça. Não venceu a disputa, mas foi chamada por uma agência de São Paulo, cujo casting era de modelos negros, para trabalhar lá. Se mudou sozinha de Camaçari para a maior cidade do país aos 17 anos, em 2004, com uma única mala em que pôs todos os seus pertences.
“A maioria das agências, na época, eram focadas no padrão branco e tinham cotas para negros. Isso limitava muito o mercado. Fiquei uns três anos direto trabalhando com moda, mas não me sentia nem um pouco feliz, nem representada”, lembra, ao mais uma vez colocar em foco o racismo. “Quando eu conseguia algo e estava no estúdio fotografando, eu estava bem. Fora isso, estava sempre preocupada, não trabalhava muito. Tinha a coisa velada do racismo, então as chances eram poucas. Era muito esforço para uma recompensa muito pequena”.Mudança Foi do convívio com amigos músicos, que conheceu quando chegou na cidade, que sua carreira de cantora começou. Até então, o único contato com a música tinha sido enquanto ouvinte e também como integrante de uma fanfarra na Região Metropolitana de Salvador. “Foi o primeiro ambiente que me abriu o portal para meus ideiais artísticos”, recorda.
Em 2011, ela conheceu a galera com quem formou a big band paulista Aláfia. Xenia é a única mulher do grupo composto por outros dez músicos de diversas regiões do país - incluindo Ceará, Bahia, interior e capital de São Paulo. Juntos, eles exploram a música de terreiro, a black music carioca dos anos 70 e o funk do EUA. Xenia França é única mulher a integrar a big band paulista Aláfia, com a qual fez um mergulho na música afro-brasileira (Foto: Ste Frateschi) Foi a música quem proporcionou a ela relacionar satisfação e recompensa com o trabalho. Não sem muito esforço.Reconhecimento Dividir o palco com figuras como Elza Soares e Maria Bethânia e ter seu nome listado ao lado de tantos outros que têm movimentado a cena musical brasileira, é motivo de alegria para ela. “Toda vez que acontece alguma coisa assim eu agradeço. Eu sempre falo: ‘Não dê ousadia a baiano’. Apesar de ser uma surpresa, eu trabalho muito, me esforço mesmo, e não posso dizer que não é isso que quero. Sou perfeccionista. Então, tudo isso é resultado, uma resposta do universo para dizer que eu estou onde quero”, comenta. É dessa maneira quase obstinada que ela vê o seu primeiro disco solo como um “ritual de passagem”, no qual ela se fez “mulher de uma vez por todas”. Intitulado XENIA, o disco será lançado nesta sexta-feira pelo selo Natura Musical. E nele, ela prova o que diz em uma das faixas: “música preta sou teu instrumento vim pra te servir”.
Estão lá os sons da diáspora negra, como jazz, samba-reggae, R&B, e música de terreiro, com pitadas de música eletrônica e rock. Ao lado de três faixas autorais (Perfeita Pra Você, Miragem e Pra Que Me Chamas?, esta última já liberada no YouTube), estão outras dez de artistas como o paraibano Chico César e o baiano Tiganá Santana. No dia 27 de outubro, ela apresenta o álbum em Salvador, em um show na Arena Sesc Senac Pelourinho.Confira o bate-papo exclusivo que ela teve com o CORREIO: Você diz que o lançamento do seu primeiro disco solo, nesta sexta, é um ritual de passagem. Por que? No país que a gente vive, a gente não tem bula para fazer nada. Abre uma porta, e atrás dela está tudo escuro. Você tem de confiar nos seus institos, no universo, pra realziar esse sonho. Meu trabalho solo é muito influenciado pelo trabalho no Aláfia, uma banda enorme, com muitas cabeças pensando, mas de certa maneira eu tenho a sensação de começar do zero, como se nunca tivesse feito nada igual. Confiar nos instintos é muito forte quando você deseja fazer algo sozinha. E esse pensamento está muito relacionado à minha vinda pra São Paulo na adolescência, a esse questionamento sobre quem eu era, quem eu sou e quem eu quero ser. Você tem que estar ligado na sua ancestralidade (em seus pais, seus avós) para ter força e coragem para dar esse pontapé inicial. Tudo que eu tinha como medo de realizar, de fazer, meu trabalho solo deu. A gente não aprende a ser auto-confiante - coisa que o racismo dificulta ainda mais. A gente tem de tirar isso da gente mesmo.Qual sua relação com a Bahia, de onde você saiu ainda tão jovem? Devo muito ao lugar onde nasci, à mãe que me criou, ao dendê que comi aí. Misturar tudo isso com as experiências que eu vivi aqui. Vai além de uma satisfação pessoal, artística, faz parte de um projeto de vida ancestral. Aqui em São Paulo eu e minhas amigas negras dizemos que somos o sonho dos nossos ancestrais, que imaginaram que um dia ia existir pessoas tão fortes ou mais fortes do que eles foram. Nós, mulheres negras, já nascemos sabendo que vamos ter que cortar um dobrado pra fazer o que queremos fazer. E acho que me tornei a mulher que me tornei a partir disso, das escolhas que fiz.No disco, você também explora sonoridades de outras partes do mundo, especialmente de Cuba? Qual sua relação com o país? A diáspora negra pela escravidão se configurou de um jeito em cada lugar. Na Bahia, os tambores falam muito forte, eles contam histórias que não estão nos livros. Quando eu fui pra Cuba isso bateu de uma forma mais forte ainda. Eu chorava na rua. Havana é uma viagem no túnel do tempo. Há muitos negros na rua, você sente que voltou pra casa. Foi minha primeira viagem para fora do continente...Acho que o mundo não está preparado pra Cuba! Médicos, engenheiros, todos negros. Além disso, todos são artistas. Foi um presente! O single que lancei Pra Que Me Chamas?, eu comecei a escrever lá.
Não sei se até por essa sua relação com o mundo da moda, mas seu trabalho está muito ligado a uma dimensão visual e estética, não é? Sim, a invisibilidade é uma questão pra nós negros. Eu que não nasci nessa era, cresci assistindo Xuxa na TV também. Além da invisibilidade dos corpos negros, eles também sempre foram fetichizados, estereotipados, associados à violência. Agora, estamos querendo estabelecer uma nova linguagem para nossos corpos e a partir deles e as plataformas digitais nos ajudam nisso. A gente cria a nós mesmos do jeito que quisermos, não tem mais a mão branca nos dando o papel. Se formos pensar bem, os negros americanos sempre se valeram da estetica visual para impulsionarem seus trabalhos, fossem eles quais fossem.
E o pontapé inicial para sua carreira solo foi o lançamento do clipe de Breu... Breu era um desejo antigo de fazer um clipe com minhas amigas, que são incriveis, e que junto comigo sempre se questionaram sobre o porquê de a gente não estar nas coisas. A música fala sobre as violências contra o corpo negro feminino, mais especificamente sobre Claudia Santos, que foi morta pela PM e arrastada por uma viatura por quilômetros. Um choque pra todas nós! Você pode ser uma mendiga e pode ser a Beyoncé, mas o racismo vai estar virado pra sua cara. Tudo que uma mulher negra fizer sempre vai ser questionado. Então, tenho que botar minha cara pra bater, não temos outra opção. E isso pode ser através da arte, da estética, da moda...Valorizar que somos lindas sim, e que existimos! A gente está lutando pela sobrevivencia, mesmo que seja um lacre, um close, estamos falando de sobrevivência.
Como fica o Aláfia com a sua carreira solo? A gente vai lançar um clipe esses dias. Lançamos um disco no começo do ano, fomos para Europa esse semestre, demos esse passão. Vou ser mais malabarista do que já sou, e vai continuar dando certo. O Aláfia é um trabalho importante, que eu me identifico muito. Tem muita coisa lá, muito caldo pra fazer ainda, muita coisa pra dizer. Não muda nada, é só uma questão de adaptação, de conciliar agendas. Xenia ao lado de Maria Bethânia, Vanessa da Matta, Filipe Catto e Johnny Hooker, durante show em São Paulo (Foto: Rafa Von Zuben/ Divulgação) Ouvindo você falar, fica evidente que há uma obstinação no seu trabalho e uma segurança muito grande sobre o que você quer ser, onde quer chegar. É assim que você se sente? Eu estou tentando fingir que sou a pessoa mais segura da vida, que sei o que é essa coisa de lançamento, de carreira solo. Acordo todo dia desesperada! Tudo que está acontecendo agora é totalmente novo, essa senação de colocar para fora que você quer muito, e não sabe o que vai ser, me faz acreditar que eu me transformei na mulher que eu queria ser.
Você já dividiu palco com Bethânia, com Elza Soares...Recentemente foi indicada pela Veja SP como uma das novas vozes que têm transformado a cena da cidade. Como é para você esse reconhecimento? Não vou dizer para você que não esperava isso! A gente se movimenta para trabalhar todos os dias, para que o trabalho seja valoriado não só pelos outros, mas por mim. Toda vez que acontece alguma coisa assim eu agradeço. Eu sempre falo: "Não dê ousadia a baiano. Apesar de ser uma surpresa, eu trabalho muito, me esforço mesmo, e não posso dizer que não é isso que quero. Sou perfeccionista. Então, tudo isso é resultado, uma resposta do universo para dizer que eu estou onde quero. A música me salvou, me deu diretrizes para eu não vacilar, ela me amparou. Então, todas as vezes que acontecem essas coisas, eu não deixo de ficar feliz.