Fábrica de cachaça no Subúrbio submete funcionárias a condições precárias de trabalho

Mulheres manipulam produtos químicos sem proteção; MPT interditou local após denúncia do CORREIO

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 17 de setembro de 2017 às 07:19

- Atualizado há um ano

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Funcionária dormindo no chão, em meio a caixas de Topcana por Foto: Ana Caroline Abreu Ferreira/Divulgação

O barulho incomoda. Vem de um tanque de metal, um processador que mistura água e açúcar. Disjuntores e fios à mostra estão próximos a pequenas garrafas pet e mangueiras que contêm cachaça. O cheiro forte enjoa. De chinelos, saias e vestidos, elas não usam qualquer tipo de proteção, com exceção de algumas luvas. Mesmo assim, não são usadas por todas as cinco funcionárias, além de um homem recém-admitido.

O lugar, sujo e improvisado, aparece em imagens de vídeo registradas há pouco mais de 20 dias pelo CORREIO. Com câmeras escondidas, a reportagem entrou no galpão onde funciona a produção da Indústria e Comércio de Vinho Veleiro de Ouro, como é registrada a empresa. Assista.

A denúncia era de que o dono de uma fábrica de bebidas alcoólicas submetia mulheres a condições degradantes de trabalho. Apesar do nome, a fábrica é de cachaça. E fica instalada em uma rua deserta no bairro de Ilha Amarela, Subúrbio Ferroviário. Sede da empresa, no dia da visita do MPT ao local, que acabou interditado (Foto: MPT/Divulgação) Nila, Natércia, Elizete e Maude, nomes fictícios com os quais identificaremos quatro das cinco mulheres, disseram que trabalham há anos sem férias, não podem ir ao médico sem ter o dia “cortado”, recebem R$ 400 por quinzena e são obrigadas a enfrentar um ambiente insalubre sem qualquer Equipamento de Proteção Individual (EPI). Entre elas, está a própria esposa do dono da fábrica.

A quinta funcionária, Leonice de Souza, 47 anos, não só autorizou a divulgação do seu nome como pediu para ele ser incluído na reportagem. “Quero usar como prova na Justiça para ter meus direitos”, disse ela.

Há oito anos em múltiplas funções na Veleiro de Ouro, Leonice conta que não sente mais cheiro. Acredita que seu olfato está prejudicado pelo fato de trabalhar sem máscara em um ambiente sem ventilação e com forte odor de álcool.

Com diversos problemas de saúde, ela diz que sequer podia ir ao médico, senão R$ 30 eram abatidos do seu salário.“O patrão não aceita quando a gente precisa ir no médico. Quando libera, corta o dia”, conta a funcionária.Ela e as outras confirmaram que trabalham sem EPIs. “A farda ele não dá. Na hora de tampar a cachaça, espirra no corpo. Não tem óculos, não tem máscara. Fico com os pés dentro da cachaça. Precisa de bota. Às vezes falta luva. Hoje em dia eu já nem sinto mais cheiro. Consumi tudo cheirando a cachaça”, relata.

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Topcana  No mercado de Salvador e de Feira de Santana, onde o único produto fabricado pela Veleiro de Ouro é comercializado, a empresa utiliza o nome fantasia Topcana. Nos registros da Serpro, a Topcana é de propriedade de Genival Cintra Pinheiro. Após analisar as imagens registradas pelo CORREIO, o Ministério Público do Trabalho (MPT) realizou operação no local e identificou nada menos que 25 irregularidades trabalhistas. As atividades da empresa foram suspensas (veja mais ao lado). 

Ainda segundo as trabalhadoras, a fábrica chega a envasar 6 mil litros de aguardente por dia. “É muita cachaça que a gente envasa. Às vezes, a gente envasa seis tanques de mil litros no dia. É muita garrafa para uma pessoa só ficar no pé da máquina tampando todos os dias”, denuncia Leonice.

Não há funções definidas. Leonice explica que todas as funcionárias fazem de tudo. “Eu empacoto, eu tampo, eu fecho fundo das caixas, boto camisinha nas garrafas (rótulos), arrumo no palete e carrego o caminhão.” O resultado é sentido no corpo.“Sinto dor nas juntas, nas mãos, nos braços, isso por causa dos movimentos que a gente faz. Porque a gente tem que fazer força para envasar. Não tem a máquina adequada, é uma máquina improvisada”, diz Leonice.Ao lado de sacos enormes com pets pequenas de cachaça, conhecidas como “bombinhas”, Natércia é uma das responsáveis por envasar o produto. “É um pouco difícil, né? Não ganha hora extra. Nunca tira férias. É muito arriscado trabalhar aqui. A gente tem muitos problemas de saúde”, afirmou a funcionária. Natércia reclamou do trabalho pesado. “Sabe o que é bater mil caixas no dia nesse caminhão aí? É muito peso. Só tem um homem trabalhando aqui. A gente mulher que faz tudo.”

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Antes, diz Nila, outra funcionária, sequer tinha banheiro no galpão. O sanitário que foi improvisado recentemente não tem nem porta. “Eu mesmo, que moro aqui perto, vou fazer minhas necessidades em casa”, afirma Nila. Quando falam do patrão, a quem chamam de Val, as funcionárias dizem que ele é “gente boa”, a não ser que elas precisem de algo.

“A gente conversa com ele e ele conversa com a gente. Mas se precisar ir no médico, se for resolver alguma coisa e chegar depois de 9h, ele corta o dia”, disse Elizete. Mas, por que essas mulheres continuam trabalhando em condições tão ruins?“Quem não quer um trabalho melhor, um salário decente, quem não sonha com isso? Enquanto não acho outra coisa fico aqui, né? Trabalho tá difícil. Parado é que não pode ficar”, explica Natércia.Batente Maude, a quinta mulher do grupo de funcionárias, é companheira do dono da fábrica. As outras apontam alguns privilégios concedidos a ela. “Pode ir no médico, pode chegar atrasada.” Mas, dizem elas, Maude também pega no batente. “Não pega como a gente, mas sabe o que a gente sofre.”

Segundo a própria Maude disse, por semana, a empresa produz, em média, 1,2 mil caixas com 12 pets de 500 ml de cachaça. Cada caixa uma é vendida a R$ 20. “Quando compra uma quantidade maior a gente faz por R$ 18 ou R$ 17. O pessoal de Feira compra muito”.

Além do galpão e do maquinário improvisado, a empresa possui um caminhão, diz Maude, para fazer entregas. Ela ainda afirma que parte da cachaça crua, antes de ser misturada à água com açúcar processados em Ilha Amarela, vem de Feira. O CORREIO entrou em contato com Genival Cintra Pinheiro, apontado como o dono da fábrica. Val, como é conhecido, chegou a atender uma de nossas ligações, mas preferiu não dar entrevista.“Quieta! Acaba com essa conversa. Ligue para o meu advogado. Tá bom? Um bom dia pra você. Tchau!”, limitou-se a dizer o dono da fábrica.O advogado de Val, Gerson Santos, afirmou que só vai se manifestar sobre a questão depois que tudo for regularizado. “Creio que daqui a dez dias vai estar tudo certo. Ele vai regularizar a vida de todas elas”, disse o advogado, referindo-se apenas aos problemas de registro na carteira de trabalho. 

Sobre o ambiente insalubre, as máquinas improvisadas e a produção repleta de riscos à saúde e à vida das mulheres, o advogado disse que a fábrica vai voltar a funcionar em um novo galpão. “Esse galpão estava funcionando de forma provisória. Vai reabrir com tudo certinho”, garantiu. 

Ministério Público do Trabalho interdita Galpão Após analisar as imagens registradas pelo CORREIO, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Superintendência Regional do Trabalho (SRT-BA) instauraram procedimento e convocaram o Grupo Especial de Combate ao Trabalho Escravo para realizar uma operação no local. Havia a denúncia de que cinco mulheres eram submetidas a trabalho análogo ao escravo em Ilha Amarela.

Uma semana depois, no dia 24 de agosto, acompanhados da Polícia Federal, MPT e SRT-BA fizeram uma batida no galpão. A denúncia se confirmou parcialmente, já que a classificação de trabalho escravo exige características que não eram latentes neste caso. Mas os órgãos confirmaram que as mulheres são submetidas a condições precárias de trabalho e identificaram pelo menos 24 irregularidades trabalhistas. O auditor Alison Carneiro e o procurador Luís Carneiro, do MPT, conversam com funcionários durante inspeção (Foto: MPT/Divulgação) Elas vão desde o não registro dos funcionários até graves riscos de acidentes como choque elétrico, mutilação e morte. “Chegamos à conclusão que aqui não é o caso de ser classificado como trabalho escravo. Mas as condições são péssimas, com irregularidades gravíssimas. Vocês estão trabalhando de forma irregular, correm risco inclusive de morte. A partir desse momento está interditado o trabalho”, disse para as funcionárias o auditor do trabalho Alison Carneiro.

“São irregularidades de meio ambiente graves, irregularidades de registro, jornada de trabalho, fraude no recolhimento previdenciário e fundo de garantia”, confirmou o procurador do trabalho, Luís Carneiro.

Segundo o procurador, na Industria e Comércio de Vinho Veleiro de Ouro há riscos iminentes de acidentes. “Essas máquinas são totalmente irregulares e fora de qualquer padrão de segurança.” O auditor Alison Carneiro disse ainda que as funcionárias têm o direito de continuar recebendo salários enquanto a situação não é regularizada.

De acordo com o Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, 22.390 acidentes de trabalho foram comunicados em Salvador entre 2012 e 2016. Em toda a Bahia, foram mais de 61 mil. De acordo com o mesmo observatório, a atividade econômica de produção de vinho, ao qual a Veleiro de Ouro está atrelada, comunicou 720 acidentes de trabalho entre 2012 e 2016. No Observatório, não há levantamentos referentes a interdições ou notificações de estabelecimentos.  

Estudante denunciou problema ao CORREIO A estudante de Jornalismo Ana Caroline Abreu Ferreira, 23 anos, foi quem denunciou ao CORREIO a exploração sofrida pelas mulheres da fábrica de cachaça de Ilha Amarela. Antes disso, ela produziu um trabalho do primeiro semestre da Unifacs em que mostrou as condições precárias às quais as funcionárias são submetidas no estabelecimento.

Uma das cinco mulheres, Leonice de Souza, é sua tia. “Descobri essa história, porque eu ando aqui desde pequena. Há muito tempo que ele (Genival, proprietário da empresa) explora essas mulheres”, lembrou Ana. O trabalho intitulado “Miserável Explorando Miseráveis” detalhou as irregularidades trabalhistas praticadas pela empresa.“As condições de trabalho são desumanas. Lá só trabalha mulheres, agora colocou um homem. Só que elas fazem tudo lá dentro. Embalam, enchem garrafas, rotulam, encaixotam e fazem a carga e descarga do caminhão”, conta Ana Caroline.A estudante, aliás, resolveu viver na pele a exploração. Tanto que chegou a trabalhar um dia na fábrica.

“Trabalhei um dia lá no Carnaval do ano passado, rotulando. É muito cansativo, até porque não tem banco pra gente sentar. A gente senta em cima de papelões ou senta no chão mesmo. Não tem equipamentos de segurança. Antigamente não tinha nem banheiro.” Ana Caroline acredita que a falta de estudo faz com que as mulheres continuem trabalhando ali. “São semi-analfabetas. Aceitam isso, porque não têm estudo, não conhecem direitos”.