Lições da Revolução Russa, um século depois

Lembrar da revolução pode fornecer importantes elementos para uma reflexão sobre os dias atuais no mundo e no Brasil

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  • Da Redação

Publicado em 5 de novembro de 2017 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Reprodução

A Revolução Russa, que implantou o socialismo no país, dividiu o mundo, embalou sonhos e guerras e moldou o século XX completa, nesse dia 7 de novembro, 100 anos. Se por um lado o movimento bolchevique fracassou em cumprir suas promessas, por outro, foi responsável por garantir protagonismo aos trabalhadores em todo o mundo e um maior acesso a direitos sociais, econômicos e políticos à maiora das pessoas. A memória relacionada à revolução pode fornecer importantes elementos para uma reflexão sobre os dias atuais no mundo e no Brasil.

A revolução eliminou a autocracia do país, deu poder ao Partido Bolchevique de Vladimir Lênin, e originou a União Soviética, o primeiro país socialista do mundo. Com o passar dos anos, a geopolítica mundial se dividiu em uma guerra fria entre o ocidente capitalista e o leste socialista.

“A Revolução Russa é um acontecimento importante, porém, muito controverso.Uma revolução cheia de promessas generosas e ações contrárias. É mais que necessário discutir o acontecimento em toda as sua complexidade e possibilidades de interpretação”, afirma Albino Rubim, professor e pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da Universidade Federal da Bahia (CULT-UFBA).

Voltando no tempo

Para entender as motivações da revolução é preciso passear pelas cidades do Império Russo por volta de 1904, quando o sistema governamental vigente ainda era uma monarquia absolutista, pré-revolução industrial. Ou seja, todo o poder estava concentrado na mão do “rei”, que no país era chamado de “czar”.

Na época, o czar era Nikolái Alieksándrovich Románov, também conhecido como Nicolau II, e a elite era composta em sua maioria pelos grandes donos de terras. Era dessas famílias pertencentes à nobreza rural que saíam os oficiais do exército e os dirigentes da Igreja Ortodoxa Russa. Essa estrutura social demonstra que todas as instituições de poder estavam nas mãos do que era considerado a alta sociedade do país, e que por sua vez todas elas estavam diretamente ligadas aos interesses de Nicolau.

Em contrapartida, o resto da população, que já chegava a cerca de 171 milhões de habitantes, a maior da Europa, sofria com extrema pobreza e exploração. Os camponeses eram obrigados a pagar altos impostos para bancar os luxos dos nobres e tinha pouco retorno financeiro dos produtos que cultivavam. Os poucos trabalhadores urbanos, que atuavam na indústria que ainda estava começando a se desenvolver, também estavam insatisfeitos com a situação na qual viviam. Protesto feminino na Rússia contra as ações do czar (Reprodução)  A formação da classe operária e o clima de descontentamento foram dando espaço para que, pouco a pouco, ideias socialistas e liberais, que iam contra os interesses do nobres, fossem entrando no país, despertando um sentimento de revolta. Com forte influência das ideias de Karl Marx surgiu o Partido Social-Democrata Russo (POSDR), duramente reprimindo pela Okhrana, uma espécie de polícia secreta controlada pelo czar.

O POSDR, no entanto, foi dividido em dois grupos básicos: os mencheviques, liderados por Julius Martov, que acreditava em uma ação mais pacífica, achava que os trabalhadores poderiam conquistar seus direitos participando normalmente das atividades políticas; e os bolcheviques, que possuíam mais adeptos e eram liderados por Vladimir Ilyich Ulyanov, popularmente conhecido como Lenin. Para eles, os trabalhadores só alcançariam posições de poder através da luta revolucionária, e para isso divulgavam a ideia da formação de uma ditadura do proletariado, na qual os trabalhadores seriam responsáveis por tomar todas as decisões na Rússia.

Domingo Sangrento

A situação socioeconômica do país piorou após a perda de uma guerra contra o Japão pela posse do território da Mancúria, no leste da Ásia. A miséria dos trabalhadores se agravou e as ruas ficaram lotadas de manifestantes que protestavam contra Nicolau II. Greves e protestos ficavam cada vez mais intensos e agora tinham o apoio de marinheiros e alguns soldados do exército.

Na tentativa de apaziguar a situação o czar publicou o Manifesto de Outubro, que prometia um governo constitucional e eleições gerais para a formação de um parlamento que escreveria a constituição da Rússia.

Entre os revolucionários, apenas o Partido Constitucional Democrata, de orientação liberal- burguesa, confiou nas promessas e acalmou seus ânimos. O proletariado e demais envolvidos deram prosseguimento à onda de manifestações que passou a ser combatida por tropas especiais treinadas para eliminar os focos de revolução. Nesse período, vários revolucionários e líderes foram mortos. Lenin acabou sendo deportado para a Sibéria e posteriormente foi viver na Suíça.

Em um domingo de 1905, durante um protesto em São Petersburgo, o czar se irritou com as revoltas e ordenou que seus soldados disparassem contra a multidão, causando desespero e confusão nas ruas. De acordo com Claude Anet, jornalista francês que viveu na época, cerca de 1.500 pessoas foram mortas e mais de 6 mil ficaram feridas. O episódio ficou conhecido historicamente como o domingo sangrento. Manifestantes fuzilados durande protesto em São Petersburgo (Reprodução) A queda dos Romanovs

O massacre acabou sendo um estopim para a revolução. Em 15 de fevereiro (março no calendário ocidental) de 1917 as forças da oposição invadiram o palácio e depuseram Nicolau II. O czar e toda a família Romanov ficaram em prisão domiciliar antes de serem fuzilados simultaneamente por tropas bolcheviques lideradas por Yakov Yurovsky em 1918.

Com a queda do czar foi instaurado o Governo Provisório, que se apoiava em ideias liberais e era regido por Georgy Lvnov e Alexander Kerensky, o Ministro da Guerra. Uma das principais preocupações desse governo era a manutenção da propriedade privada e a permanência da Rússia na Primeira Guerra Mundial. Enquanto isso, o país permanecia em situação de miséria e vivendo uma forte crise econômica. Esses acontecimentos marcam a primeira fase da revolução conhecida como Revolução de Fevereiro. Nicolau II e a família Romanov (Reprodução) Lenin

Voltando do seu exílio na Suíça, Lenin passou pela Alemanha e conseguiu negociar 40 milhões em dinheiro para o financiamento da sua revolta. Entre os objetivos do bolchevique estava a retirada da Rússia da guerra, o que seria um grande benefício para os alemães.

Com o apoio do Império Alemão, em 25 de outubro (novembro no calendário ocidental), os bolcheviques cercaram São Petersburgo, onde estava localizada a sede do Governo Provisório e tomaram o poder. O que se repetiu na maioria das províncias russas, com exceção de Ucrânia, Polônia e Finlândia. Inicia-se a partir daí a segunda parte do movimento, conhecido como Revolução de Outubro.

Após a tomada dos bolcheviques todos os partidos concordaram que seria necessário a formação de uma assembleia constituinte para a nova gestão do país. O Partido Constitucional Russo foi perseguido e impedido de participar do pleito, que aconteceu em 12 novembro de 1917, todos os outros estavam livres para que pudessem se eleger.

O clima pacífico chegou ao fim com o resultado das eleições: o partido dos socialistas revolucionários recebeu duas vezes mais votos que os bolcheviques e, baseado nisso, Lenin publicou suas Teses nas quais colocava seu partido acima da assembleia.

Em janeiro de 1918, protestos a favor do poder da assembleia foram reprimidos com tiros de tropas bolcheviques e, na madrugada do dia seguinte, a tão recente assembleia constituinte foi dissolvida.

O Exército Vermelho

As diferentes formas de pensar sobre como o novo governo russo deveria atuar acabaram resultando em uma guerra dentro do próprio país. Haviam três grupos contra os bolcheviques: os czaristas, os liberais e os anarquistas.

Leon Trotsky se encarregou de organizar as forças bolcheviques para a batalha, dando origem assim ao Exército Vermelho, que venceu a guerra no início de 1921. Dessa forma, o Partido Bolchevique, que já se denominava como Partido Comunista, se consagrava como únicos detentores do poder no governo russo.

“Algumas das ideias comunistas não têm como se tornarem reais atualmente como foram formuladas no passado, é impensável uma sociedade melhor sem liberdade e democracia, ou o socialismo a partir de um partido único que canaliza todas as ideais da sociedade, com falta de pluralidade, da diversidade de visões, só com intenções maniqueístas”, analisa Albino, que completa: “Mas alguns conceitos são muito tangentes, como em relação aos direitos básicos. Há algumas heranças dessas correntes que se fazem possível na modernidade”.

Entre as ações tomadas pelo partido comunista estava a criação da Comissão Estatal de Planificação Econômica, que visava a reconstrução industrial e econômica do país além de seguirem as medidas da NEP (Nova Política Econômica) que incluía: liberdade de comércio interno, liberdade de salário aos trabalhadores, autorização para o funcionamento de empresas particulares e permissão de entrada de capital estrangeiro para a reconstrução do país.

Já no final de 1922 ocorreu a fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), onde o órgão máximo, chamado de Soviete Supremo, era composto por membros de diversas repúblicas.

Stalin

Com a morte de Lenin, em 1924, Josef Vissariónovitch Stalin tornou-se o principal líder da União Soviética. Ele deu início a um regime totalitário, que perseguiu opositores e tolheu liberdades individuais. Trotsky foi assassinado em seu exílio mexicano. Até 1991, a URSS conviveu com dirigentes que ora pregavam uma maior abertura do regime, ora determinavam um maior fechamento.

“A falta de liberdade e democracia, o autoritarismos e as imposições culturais estão entre os principais motivos que levaram ao fim da URSS em 1991. A opção que eles fizeram de ser uma concorrência ao capitalismo na produção de armas e tecnologias, fizeram com que deixassem de lados outras coisas muito simples” explica Albino.

Inspiração

A coragem da classe trabalhadora russa seguiu ao longo da história influenciando diversos movimentos trabalhistas e outros importantes eventos históricos. Até 1917, o ideário dos trabalhadores estava mais atrelado ao anarquismo que ao comunismo, mas a partir daquela data, partidos comunistas foram implantados em todo o mundo à medida em que a URSS se tornava uma potência global. Os trabalhadores passaram a reivindicar melhores salários e condições profisisonais. A disputa pela hegemonia do mundo deu início à Guerra Fria.

O Brasil não ficaria imune às ondas globais. A década de 1920 foi marcada pela ascensão do movimento operário. A chegada de imigrantes europeus para compor o corpo de funcionários das indústrias nacionais facilitou a entrada de ideologias revolucionárias no país, sobretudo, do anarquismo e do socialismo.

O controle sobre o custo de vida e da inflação, e a falta de aumentos salariais e de uma jornada de trabalho regulamentada gerou longas greves e paralisou as atividades de diversas indústrias.

Como forma de controlar as revoltas, o presidente da época, Epitácio Pessoa, aprovou a Lei de Repressão ao Anarquismo com o intuito de punir quem persistisse com as reivindicações. A ação, no entanto, acabou fazendo com que os operários percebessem que era necessária uma melhor organização entre eles para que o movimento desse certo.

A partir dessa lógica, as lideranças sindicais começaram a buscar uma maior consistência ideológica e decidiram romper com as influências anarquistas e fundar o Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922. Reunião do Partido Comunista Brasileiro  (Reprodução) Albino Rubim ressalta que a Bahia também sofreu alguns reflexos da revolução. Em 1919 ocorreu uma grande greve no estado e uma manifestação que reuniu quase 15 mil pessoas, um número absurdo para época. Além disso, ainda em 1917, ano do estopim da Revolução Russa, acontece na Bahia o primeiro congresso de trabalhadores do estado.

A Rússia moderna

Atualmente presidida por Vladimir Putin, a Federação Russa, fundada após a queda da URSS em 1991, hoje se consagra como uma forte e perigosa, potência mundial.

A Rússia é hoje o país com maior área do planeta, tem a nona maior população do mundo, com 142 milhões de habitantes, é a décima segunda maior economia do mundo por PIB nominal e a sexta em poder de compra. Figura também participação em importantes grupos mundiais como a BRICS e o G-20.

Uma das principais preocupações da Rússia no cenário geopolítico foi consolidar sua influência nas ex-repúblicas soviéticas através da CEI (Comunidade dos Estados Independentes).

Mesmo com o fim do comunismo, as tensões da Guerra Fria e as heranças da antiga União Soviética ainda mexem com a estrutura bélica e militar do país. Prova disso é que a Rússia integra um dos cinco Estados reconhecidos com armas nucleares no mundo e possui o maior arsenal de armas de destruição em massa do planeta. Putin é apontado como um governante que quer restaurar a influência internacional de seu país, reconquistando um status que tinha na época da guerra fria.

A ausência de uma alternativa política ao capitalismos e o fortalecimento das grandes corporações gerou um cenário mundial de restrição ao acesso a direitos sociais. Seja na crise dos refugiados na Europa, seja nas reformas liberais na América Latina ou mesmo no enfraquecimento de iniciativas globaisem favor de toda a humanidade (Acordo Climático) e órgãos multilaterias que regulem o comércio e promovam a paz (ONU e suas agências). É um mundo em que o comunismo é dado como morto, em que formas tradicionais de represenaçaõ política são questionadas e a concentração de renda nas mãos de poucos só cresce. O cenário apresenta pessoas acuadas, temerosas das consequências trazidas com as revoluções tecnológica e comportamental e pelos fantasmas do desemprego, das catástrofes climáticas e das tragédias provocadas pelo terrorismo global.