Ajayô, meu Senhor do Bonfim!

Gabriel Galo é escritor

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  • Gabriel Galo

Publicado em 11 de janeiro de 2018 às 03:05

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Para entender a Bahia, prato cheio de verdade, sem essa de só a cabecinha, de uma vez só e até o talo, apenas a Lavagem do Bonfim. Não se sabe ao certo a cronologia do assunto, e quem disser que sabe ou lá esteve no começo – do que duvido – ou escolhe uma fonte para assumir como verdadeira, e segue o cortejo.

Mas na Bahia, lugar onde o profano se disfarça de crença para espalhar sacanagem e qualquer aglomerado de gente vira quizumba, o negócio é juntar a coisa toda dentro de uma bacia só, sacudir até que fiquem todos lambuzados de dendê e sair pulando agradecendo à toda e querendo arrumar quem ofereça chamego.   No contexto histórico, uma breve explicação do que compõe a Bahia. Escravos obrigados a lavar a igreja recém-construída transferem seus rituais disfarçados para o evento, aproveitando a tênue liberdade que teriam para explorar sua fé. Baianas e suas águas de alfazema perfumando e limpando o centro cheirando a novo. Deu certo. Quem entendia do riscado via que ali não se seguia festejo católico, não, senhor.

Nos quase oito quilômetros do trajeto desde a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a colina, o burburinho ia engordando, abraçando quem de bobeira no caminho. Povo foi chegando e chegando, sem restrição, entrava e fazia como lhe conviesse. Saravá!

E quando povo chega, se plante, é a festa do isopor, abra espaço para o gelo, e logo é um tal de abrir o porta-malas do carro com aquele som poderoso e tascar nas alturas, porque o reggae vai comer solto.

O cortejo era um grito de libertação! Enquanto o Carnaval é a festa da esbórnia, – não que baiano não goste disso, pelo contrário, se não envolve esbórnia, não prospera – mas se abraça o religioso, a alforria é dobrada. Ou triplicada, veja: liberta-se temporariamente dos grilhões da escravidão; performa seus ritos religiosos fortemente oprimidos; e ainda engana um monte de gente.

Em se tratando de dissimulação, na Bahia só tem PhD.

No que o grito contido de liberdade virou reivindicação. Quem protesta em silêncio uma hora começa a exigir. O escondido vira escancarado. E tome faixa, e tome protesto, e tome esculacho, e tome igreja fechada, e tome povo comendo água, e tome música e batuque e tome intervenções.

Nos varandás, muitos meninos se tornaram homens. No lombo do jegue, as cargas do que cansados de levar nas costas, as agruras do cotidiano, e que nos deu uma das mais lindas expressões da província: mais enfeitado que jegue na Lavagem do Bonfim.

No passar dos anos, misturou-se tudo. Quem de nós não conhece alguém que segue a tradição da missa pela manhã, para depois rezar pro santo vestido de bata branca e colar de contas do orixá que lhe guarda? Por via das dúvidas, pode. Eparrei! Odoyá! Não esqueça do sinal da cruz. Acenda a vela, zifio. A bênçao, meu pai!

Nesta esteira, Bonfim e Oxalá fundiram-se em uma única entidade. Senhor das graças alcançadas, líder máximo do sincretismo religioso baiano, sem vergonha de se dizer multifacetado, porque uma coisa é outra coisa e outra coisa é uma coisa. Ajayô, meu senhor do Bonfim!

Gabriel Galo é escritor