Cachoeira: história e memória das Lutas pela Independência da Bahia

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  • Da Redação

Publicado em 2 de julho de 2020 às 11:56

- Atualizado há um ano

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Cachoeira era uma das mais prósperas vilas do Recôncavo Baiano e ocupava uma posição de entreposto comercial a partir do seu porto fluvial às margens do Rio Paraguaçu. Toda sorte de produto oriundo dos sertões chegava ao seu porto e dali partia para Salvador, a Capital da Província da Bahia. O refrão do samba de roda nos lembra de como a cidade matinha relações com outras regiões produtivas e dinâmicas da província: “Cachoeira: eu moro em jacobina, eu moro em Jacobina, Cachoeira é minha terra...”

Do ponto de vista econômico, produzia tabaco, cachaça (hoje, os licores com grande fama), além da agricultura de subsistência e o mais importante produto do agronegócio da época: o açúcar com a utilização da mão de obra escrava. E mesmo agora, quando as senzalas já não ocupam a paisagem, a vida do nosso povo continua difícil como lembra os versos do poeta: Em usinas escuras, homens de vida amarga e dura produziram este açúcar branco e puro com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

A sociedade formada no Recôncavo Baiano e em Cachoeira nos três séculos de colonização mobilizou europeus, povos nativos e africanos (sempre impregnado de protagonismo em suas lutas) na ocupação e exploração do território com o objetivo de atender aos interesses da metrópole portuguesa conforme estabelecido em um sistema conhecido como PACTO COLONIAL: termo consagrado pela historiografia para designar as relações assimétricas de poder entre a Colônia (sem autonomia política) e a Metrópole (centro das decisões).

É nesse sentido que podemos entender os embates entre portugueses e brasileiros, bem como o processo que teve início no dia 25 de Junho de 1822 com o primeiro passo na Independência do Brasil, na Vila de Nossa Senhora do Rosário Porto da Cachoeira e culminou com a vitória das forças patrióticas a 2 de julho de 1823, no âmbito da Crise do Antigo Sistema Colonial.

Com efeito, a elevação à categoria de Reunido Unido de Portugal, Brasil e Algarves por força da presença da Família Real, fez com que o Brasil pudesse gozar de mais liberdades econômicas, o que satisfazia os proprietários de terras e escravocratas ligados ao setor agrário-exportador, aos grandes comerciantes e a uma nobreza “nacional”, além de parte da população da colônia que passou a ter o acesso a serviços e espaços públicos como resultado das medidas de D. João VI, no Brasil desde 1808.

Entrementes, o retorno do Rei D. João VI e a sua Corte para Portugal, em 1820 abriu espaço para a iminente ameaça de (re)colonização do Brasil o que acarretaria a volta de pesados tributos e cerceamento das liberdades econômicas. Foi nesse contexto que acendeu a chama nacionalista e os desdobramentos dessa reação culminaram com as lutas de independência do Brasil, a partir do Recôncavo Baiano, região de grande importância econômica e política.

Entretanto, as elites coloniais temiam uma ruptura política com Portugal cujas consequências pudessem colocar em risco a estrutura social da época: a escravidão. O “fantasma” da Revolução Haitiana, quando a partir de 1791 um grupo de descendentes africanos liderados pelo alforriado François Dominique Toussaint promoveu um movimento de independência com a abolição da escravidão e instalação de uma república assombrava o Novo Mundo. Na Bahia, a Conjuração dos Alfaiates, em 1798, representou uma proposta emancipacionista profundamente inspirada em ideais populares e progressistas: “Animai-vos, povo bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que seremos todos irmãos, o tempo em que seremos todos iguais.” Esse movimento popular foi duramente reprimido, mas permaneceu como um sentimento emancipacionista latente que encontrou abrigo nos acontecimentos dos anos de 1822 e 1823, apesar do desfecho monarquista e centralizador que iria moldar o Estado Brasileiro, durante o Império.

Os deputados brasileiros que retornaram da cidade do Porto e os seus pares aqui no Brasil passaram a enxergar na figura de Pedro de Alcântara uma saída, um caminho mais seguro para evitar uma hecatombe na ordem social vigente e proceder à ruptura com Portugal. Mas esse não foi um processo simples.

A política para o Brasil adotada pelas Cortes Gerais Portuguesas era no sentido de não existir nenhum tipo de poder central executivo na colônia e para tanto indicou o retorno de D. Pedro, a Portugal (contrariando essa ordem temos o famoso Dia do Fico) e redefiniu o comando das Armas nas Províncias. Na Bahia, esse foi um processo tenso.

Ignácio Madeira de Melo foi designado para assumir o comando das armas em substituição ao brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães o que gerou conflitos. Em 19 de fevereiro, Madeira de Melo fez valer a decisão de Lisboa e ocupou a sua função após atacar o Quartel da Mouraria (vizinho ao Convento da Lapa – episódio que marcou a morte da Sóro Joana Angélica que se colocou a frente da entrada que dava acesso ao convento para impedir a invasão dos portugueses que procuravam pelos soldados brasileiros); além disso, também bombardeou o Forte de São Pedro que capitulou.

Diante da violência empreendida por Madeira de Melo e a chegada de mais tropas portuguesas em Salvador, inúmeras famílias abandonaram os seus casarões e solares em direção ao Recôncavo Baiano: Santo Amaro, São Francisco do Conde, Maragogipe e Cachoeira.

Em 14 de junho de 1822, na Vila de Santo Amaro da Purificação a Câmara reunida decidiu: “que haja no Brasil um centro único de poder executivo”. No dia 24 de junho, secretamente reuniram-se, em Belém, os proprietários José Garcia Pacheco de Moura Pimentel e Aragão e Rodrigo Falcão Brandão junto com soldados, lavradores e intelectuais. Mas foi no dia 25 de Junho de 1822, na Casa de Câmara e Cadeia que o primeiro brado de independência foi ouvido.

A Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira com a presença dos habitantes da então Freguesia de Deus Menino de São Félix antecipou a 25 de junho de 1822 a aclamação de Pedro de Alcântara, como Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil: naquele momento estava decidido – O Brasil não estaria mas sujeito às ordens de Portugal.

A canhoneira disposta no Rio Paraguaçu dispara contra a multidão dos que se regozijavam com a decisão da Casa de Câmara e Cadeia e celebrava Te Deum na Igreja Matriz daquela vila. Os portugueses não aceitariam aquela ousadia.

Era o início das Guerras de Independência na Bahia. Após quatro dias de batalhas, a canhoneira lusitana foi vencida. Na casa de nº 3, situada na atual Praça Inácio Tosta, popularmente conhecida como Praça do Relógio, em São Félix – então distrito de Cachoeira - foi fabricada a cartucheira com a qual a embarcação portuguesa foi vencida: a notícia se espalhava e o sentimento nacionalista ganhava os corações brasileiros.

A Guerra entrou pelos meses do ano de 1822, batalhões patrióticos se formaram. As guerras são capazes de revelar inúmeras facetas: do Batalhão dos Periquitos ao Exército Pacificador liderado por Labatut e a Marinha organizada pelo Lord Cochrane; às importantes batalhas como a de Pirajá e 7 de Janeiro, em Itaparica. Digno de nota a constatação do General Labatut ao chegar para organizar as forças armadas oficiando ao Ministro José Bonifácio: “nosso exército é formado por voluntários, brancos pobres, tupinambás, negros libertos e escravos enviados pelos seus senhores e esclarece: nenhum filho de proprietário rico tinha se apresentado como voluntário.”

Por esse motivo, vale destacar a participação popular na Bahia, a presença do povo que nos legou o Soldado Medeiros – a nossa valorosa Maria Quitéria que serviu no Batalhão dos Periquitos cuja atuação foi decisiva na defesa da Barra do Paraguaçu protegendo a Bacia do Iguape e todo Recôncavo Baiano. Digno de destaque esse protagonismo feminino, a força e a atitude da mulher por quanto ainda seja necessário por reiteradas vezes assumir uma agenda de emancipação e dos direitos feministas em um país como o Brasil em que se registra alto índice de violência contra a mulher nos dias atuais: que as mulheres de hoje já não precisem se vestir de homens para ocupar os diferentes espaços e tenhamos Maria Quitéria como um símbolo da luta feminina da qual devemos nos orgulhar.

E Maria Felipa – mulher negra, marisqueira corajosa a enfrentar com outras mulheres os soldados portugueses quando atacaram Itaparica tomandolhe as armas. O 25 de junho pertence a todo povo de Cachoeira e do Recôncavo Baiano, parte instigante da Epopéia das Guerras da Independência da Bahia e do Brasil.

Cachoeira, São Félix, Santo Amaro, Maragogipe, São Francisco do Conde, Itaparica: as Vilas do Recôncavo Baiano; Jacobina, Rio de Contas e as Vilas do Sertão Baiano, foram decisivas no processo da Independência da Bahia. Portanto, o 25 de junho não é apenas uma data histórica, simboliza a luta do povo baiano contra a opressão e a tirania com que se revestiu o domínio português sobre essas terras. Talvez por isso esse processo tenha mobilizado diferentes setores da sociedade da época, senhores de engenho, grandes proprietários de escravos e de terras, comerciantes, artífices, a população pobre e escrava, funcionários públicos todos avizinhados pelo ideal de nacionalidade – eis o Estado como comunidades imaginadas!

Em uma manhã de sol, Salvador foi reconquistada das garras de Madeira de Melo. Pirajá, Cabrito, Convento da Lapa, Forte São Marcelo, Forte São Pedro são lugares indissociáveis dessas páginas da história da Bahia. Maria Quitéria, General Labatut, Joana Angélica, João de Botas, General Lima e Silva, José Antônio da Silva Castro, Tambor Soledade, Maria Felipa, Corneteiro Lopes são nomes consagrados nos anais da história e da memória popular desses acontecimentos entre o 25 de Junho de 1822 e o 2 de Julho de 1823. Mas o que temos a aprender com tudo isso? Como as gerações do presente compreendem as comemorações desta importante data?

Seja a firmeza da Cabocla – alusão a Catarina Paraguaçu – símbolo da união entre os povos e da mulher guerreira – a inspiração da luta atual das mulheres. Em cada mulher uma Maria Quitéria, “empoderada” e disposta a lutar contra as diversas formas de violência física e psicológica, no presente.

Com um dragão aos seus pés representando a opressão dos portugueses derrotados e os símbolos da guerra que adornam o seu carro alegórico, o Caboclo de ontem nos lembra do quanto devemos lutar hoje quando os nossos direitos estão ameaçados (demarcação de terras indígenas e ações de reparação) e as conquistas sociais sofrem poderosos ataques na contemporaneidade brasileira.

Que a memória da Guerra de Independência na Bahia inspire a lutar a batalha cotidiana pela nossa sobrevivência diante das agendas atualizadas pelas demandas sociais, políticas e culturais da atualidade. E nesse momento, em meio a uma pandemia que ameaça os seres humanos e o modo de vida como o conhecemos hoje, esteja cada um seguro na fé em Deus, animado pela esperança e inundado pelo amor ao próximo.

* Mestre em História pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano - UFRB. Graduação em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. Músico e produtor cultural.

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