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Quando o fiel quer converter a religião

Leia artigo na íntegra

Publicado em 2 de novembro de 2025 às 08:00

Há quem entre numa religião não para se converter, mas para converter a própria instituição à sua visão de mundo. Não busca aprender a gramática daquela fé; pretende reescrevê-la. Não busca salvação, busca validação de suas condutas. A grande obra do sagrado sempre foi o inverso: deixar que a Verdade nos converta, que a doutrina nos oriente, que a Graça nos refaça.

O apóstolo de si mesmo — figura típica da nossa época — não se ajoelha: reivindica. Não se arrepende: autolegitima-se. Não confessa: advoga. Aproxima-se do espaço sagrado como quem sobe a um palanque, com um programa de reformas debaixo do braço e o olhar piedoso de quem veio “ajudar a tradição a atualizar-se”. É como quem atravessa o limiar de uma casa alheia trazendo, debaixo do braço, uma mudança completa de móveis — e, se possível, trocando também a placa da porta.

O catequista do próprio desejo vai ao templo como quem vai a um balcão de SAC: protocola exigências, invoca “direitos espirituais”, cita estudos de ocasião, ameaça reputações. Em vez de pedir orientação para transformar a própria vida, pede caneta para reescrever a doutrina. E, se encontra resistência, troca a oração pelo contencioso: convoca abaixo-assinado, redige manifesto, ingressa com demanda judicial. Troca a humildade do discípulo pela postura do consumidor insatisfeito.

Ele não pergunta “Senhor, que queres de mim?”, pergunta “Igreja, o que farás por mim para eu continuar exatamente o que já decidi ser?”. Almeja absolvição sem arrependimento, bênção sem renúncia, sacramento sem conversão.

A conversão — que sempre foi mudança de vida à luz da Verdade — degrada-se, então, em pressão do fiel por validação irrestrita. Em vez de ajoelhar-se diante do Mistério, tenta sentá-lo à mesa para negociar cláusulas. E, quando a resposta do Evangelho, da Torá, do Corão ou da tradição ancestral não agrada, rotula a religião de “excludente”, “pouco acolhedora”, “desatualizada”. Na realidade, não é acolhimento que se pretende, mas chancela; não é a verdade que se deseja, mas concordância.

Tudo isso é embalado por um argumento sedutor: “As religiões sempre mudaram.” Sim — mudaram para ser mais fiéis ao próprio coração, não para tornarem-se outra coisa. Reforma autêntica é retorno à fonte, não desvio de curso. O que vemos agora é o devoto que não quer converter-se; quer converter a doutrina: toma o cânone como hipótese, rebaixa o dogma a opinião, reescreve o mandamento conforme seus projetos pessoais. Onde a tradição diz “assim é”, ele responde “assim sou” — e pretende que o credo se curve ao seu perfil. O caminho estreito não precisa mais ser trilhado; basta alargá-lo à medida do seu passo.

Se a fé é encontro, ele a reduz a negociação; se a verdade é recebida, ele a transforma em versão. E, assim, de “fiel”, só lhe sobra a palavra — porque, no íntimo, sua fidelidade não é ao Transcendente, mas ao próprio reflexo. No fundo, quando o adepto quer converter a religião, repete a velha tentação: fabricar um deus à própria imagem.

Ora, se toda confissão religiosa deve ser reformatada sempre que colidir com a inclinação de um indivíduo ou com o padrão cultural vigente, nenhuma sobreviverá. Restará um mínimo denominador comum — pálido e inofensivo —, que não converte ninguém, porque já está convertido ao espírito da época.

Num regime livre, vigora um princípio elementar: quem se associa a uma organização religiosa adere a um caminho já traçado. Não por acaso, o termo técnico é “aderente”: trata-se de alguém que voluntariamente ingressa numa comunidade com valores, ritos e crenças próprios — aos quais, ao entrar, decide submeter-se. E há razão jurídica para isso: a Constituição garante a liberdade de consciência e protege os locais de culto e suas liturgias justamente porque reconhece que as comunidades de fé têm o direito de permanecer o que são.

Naturalmente, o seguidor que se sente desconfortável tem, sempre, o direito de saída — mudar de paróquia, de denominação, de religião. Mas não tem o “direito de remodelar” o sistema de crenças e valores a que livremente aderiu. Liberdade de consciência não implica autoridade para refazer a doutrina alheia. Religião não é “à la carte”, em que cada um escolhe o preceito do dia e palpita sobre o cardápio de dogmas que deve ser oferecido. Em suma: o aderente pode mudar de religião; não pode mudar a religião.

Confissões religiosas são escolas de uma tradição. Quem nelas entra para aprender encontrará mestres, irmãos e caminho. Quem entra para impor a aula que trouxe pronta talvez descubra que o lugar certo não era o altar, mas a rua — onde é legítimo fundar outra obra.

André Fagundes
André Fagundes Crédito: Divulgação

André Fagundes é doutorando em Direito Público e mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É também professor na pós-graduação em Direito Religioso na UniEvangélica/IBDR, pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (CEDIRE) e jurista aliado da Alliance Defending Freedom (ADF International).