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Da Redação
Publicado em 23 de outubro de 2022 às 16:00
- Atualizado há 2 anos
Acostumada a visitar o Santo Antônio Além do Carmo à noite para curtir seus bares, decidi atravessar, de dia e a pé, as ruas do bairro do Centro Histórico. Com um olhar quase estrangeiro, tive uma experiência completamente diferente. Primeiro, há que se dizer que tudo no Santo Antônio (Carmo, para os mais chiques) é digno de contemplação. Sob um céu azul quase impensável após uma chuva grossa, amigos resenham no boteco. No restaurante chique, gringos se deliciam com a moqueca de camarão carregada no dendê. Desviando dos automóveis, a mãe leva pela mão a criança. O vendedor de pamonha grita para chamar atenção da clientela. O cachorro se esparrama na calçada. Sobrados coloridos com vista para o mar dividem atenção com casinhas humildes ornadas com flores na janela. Livros em uma prateleira sinalizam: sebo aqui. O flanelinha sinaliza: vaga aqui. O antigo e o contemporâneo. O sossego e o fervo. Tudo em comunhão. Imóveis nas ruas Direita e do Carmo custam até R$ 8.200 o metro quadrado (Marina Silva/Correio) A atriz Regina Casé, o artista plástico Vik Muniz, o publicitário e empresário Pedro Tourinho, o marchand francês Dimitri Ganzelevitch são apenas algumas personalidades que possuem imóveis no local, já há um bom tempo. Recentemente, em uma postagem no Instagram, a atriz Fernanda Paes Leme anunciou que também comprou uma casa por lá. Não é coincidência que artistas, agitadores culturais, influencers e famosos em geral venham reparando, cada vez mais, no bairro. >
O Santo Antônio é, realmente, inspirador. E surpreendente: em qual outro lugar do mundo a gente se depara, no meio da rua, com um pagodeiro cantando, enquanto um coreano requebra, rodeado de meninas, e um artista pinta uma tela? Na Macondo soteropolitana tudo é possível. No dia, o músico Oh Polêmico gravava o clipe do hit ‘Samba do Polly’. >
Quem pintava em meio ao ‘samba polemiquinho’, no caso, era Leonel Mattos. Premiado e reconhecido internacionalmente, definitivamente, a zona de conforto não é o lugar do artista plástico de 62 anos. Há 12, ele deixou o Monte Serrat, na Cidade Baixa, para viver no Santo Antônio. Logo nos primeiros anos, mapeou os ateliês, criando o Circuito de Ateliês, projeto que deu visibilidade aos cerca de 20 artistas plásticos locais, através de apresentações de música e pintura ao vivo, realizadas no monumento da Cruz do Pascoal. Leonel Mattos pinta uma tela na Cruz do Pascoal, durante gravação do clipe de Oh Polêmico (Foto: Nilma Gonçalves) Segundo Mattos, esse foi o gatilho para o turismo criativo do bairro. “Com o movimento, os padres também passaram a abrir as igrejas para visitação e, em seguida, veio a novela, quando houve um boom”, destaca. A telenovela a qual se refere é Segundo Sol (2018), trama da Globo/TV Bahia, ambientada em Salvador, com personagens que residiam no Santo Antônio, entre eles Beto Falcão, interpretado por Emílio Dantas. >
Casada com Leonel Mattos, a também artista plástica Isa Oliveira nasceu no Curuzu, cresceu em São Paulo e foi quem decidiu que o casal se mudaria para o Centro Histórico. “Meu sonho sempre foi morar no Santo Antônio. Um dia, a gente tomando uma cerveja ali no Bar do Ulisses e eu disse: ‘Leonel, eu venho morar aqui’. No outro dia, estávamos nesta casa”, relembra, sentada no sofá do imóvel acolhedor e repleto de obras assinadas por eles, que fica localizado na Rua Direita do Santo Antônio. “Aqui tem nossa alma, nosso coração”.Meu sonho sempre foi morar no Santo Antônio. Um dia, a gente tomando uma cerveja ali no Bar do Ulisses e eu disse: ‘Leonel, eu venho morar aqui’. No outro dia, estávamos nessa casa>
Mas, esses momentos de tranquilidade em casa estão cada vez mais raros. Há alguns meses, Isa e Leonel reativaram, na mesma rua, a Pousada das Artes, que havia sido fechada pelos antigos donos durante a pandemia. Transformado em um espaço multiuso, além de pousada agora o casarão é espaço gastronômico, com a Varanda Gourmet da Isa, onde ela mostra os talentos culinários já conhecidos em todo o bairro, sobretudo pela lasanha de berinjela e feijoada de andu; e ateliê, com exposição dos trabalhos do artista plástico baiano. >
Clima de interior >
Há uma década, Claudio Marques, 52, pedala de casa até o Cine Metha Glauber Rocha, complexo de salas de cinema na Praça Castro Alves, do qual é um dos coordenadores. Quando chegou no bairro, ainda havia alguma tranquilidade. O clima de interior aliado às múltiplas características do lugar, muitas até antagônicas, foram determinantes para a escolha da nova morada. >
“Há algo do encantamento da Bahia que resiste aqui no Santo Antônio. Creio que há um caldeirão cultural raro no bairro. Há muita sofisticação e muita simplicidade, ao mesmo tempo. Aqui, é possível conviver com o diferente, furar nossas bolhas”, analisa o cineasta, que mora com a esposa, a também cineasta Marília Hughes, e o filho, Tião, em um imóvel com vista para a Baía de Todos os Santos. “Priorizei a relação com o mar. Vale lembrar que as casas, antigamente, priorizavam a rua e não o mar”.Há algo do encantamento da Bahia que resiste aqui no Santo Antônio. Creio que há um caldeirão cultural raro no bairro. Há muita sofisticação e muita simplicidade, ao mesmo tempo. Aqui, é possível conviver com o diferente, furar nossas bolhas>
Em um sobrado da Rua Direita, o influenciador digital Cleidson Santana, 30, tem outras prioridades: “Adoro ficar na sacada do quarto observando o movimento lá fora. Sou fofoqueiro”, brinca. Mas, enquanto espia a vida alheia, algumas vezes ele flagra momentos nada agradáveis: “Gosto da calmaria da minha rua, mas já vi casos de assalto em plena luz do dia”. O digital influencer Baby, que adora ficar na varanda, comemorou um ano da chegada ao Santo Antônio (Foto: Lucas Paim/ divulgação) Para Baby, como é conhecido entre seus quase 250 mil seguidores no Instagram, o que chama atenção para o bairro, além da beleza arquitetônica, é o fato de haver muitos bares, restaurantes e espaços de arte e cultura. “Criado e crescido na Cidade Baixa”, como faz questão de afirmar, o influencer comemorou, no mês passado, um ano da mudança da Vila Ruy Barbosa para o Santo Antônio, com um petit comité para amigos próximos. >
Emoldurada pela janela de casa, outra que gosta de acompanhar a movimentação da rua é dona Judite Veloso Gama, de 86 anos, a única benzedeira do bairro. Quando veio de Cachoeira, no Recôncavo, há mais de sete décadas, para trabalhar como empregada doméstica, o bonde passava em frente ao sobrado azul de esquina onde mora, doação dos antigos patrões, de quem cuidou por toda a vida. Dona Judite (que não gosta de fotos) atende pessoas comuns e famosas como a socialite Narcisa Tamborindeguy (Foto: Nilma Gonçalves) Mãe, avó e bisavó, a senhorinha de voz calma, porém firme, ainda hoje cuida do galinheiro no quintal, da coleção de mais de 20 bonecas e das pessoas de todas as partes do mundo que vão em busca de cura, através de suas rezas. Entre as clientes mais famosas está a socialite Narcisa Tamborindeguy. Sobre o bairro em que viveu por todos esses anos, declara, com a sabedoria de quem foi testemunha ocular de muitas transformações: “Eu amo o Santo Antônio”. >
Nascida e criada no Santo Antônio, Soraya Fael, 52, nunca arredou o pé de lá e também acompanha as mudanças. Hoje, ela acredita que o bairro ganhou perfil boêmio. “Todo final de semana é esse agito. Começou pela novela e a requalificação deu um upgrade. Tem coisas que melhoraram e outras que pioraram. A Iluminação melhorou, a segurança ficou pior. Como a procura está muito grande, principalmente aos finais de semana, a gente precisa de mais policiamento”, alerta. Tem coisas que melhoraram e outras que pioraram. A Iluminação melhorou, a segurança ficou pior. Como a procura está muito grande, principalmente aos finais de semana, a gente precisa de mais policiamento>
Requalificação e gentrificação >
Uma das recentes transformações foi a requalificação realizada pelo Governo do Estado - através da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) -, criticada por muitos moradores pela falta de diálogo entre o poder público e eles. Com investimentos da ordem de R$ 6,5 milhões, foram feitas obras que contemplaram reforma de passeios, pavimentação e rebaixamento da fiação das redes de energia elétrica e telecomunicações, que virou subterrânea. As obras ocorreram na Travessa Santo Antônio, Largo do Santo Antônio, Rua Direita, Ladeira do Boqueirão e Largo da Cruz do Pascoal. >
Nascido no Santo Antônio e conhecido por todos no bairro como Gago, Heitor da Conceição Marques, de 34 anos, é guardador de carros no Largo do Santo Antônio desde os 12. Agora, os moradores acompanham o crescimento dos quatro filhos do rapaz. Trabalhando todos os dias, vez ou outra ele se depara com famosos como o cantor e compositor Seu Jorge e o casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. Para Gago, “a requalificação ficou legal, pois valorizou a região”. Conhecido como Gago, Heitor da Conceição Marques é guardador de carros no Largo do Santo Antônio desde os 12 (Foto: Nilma Gonçalves) O aluguel aqui ficou muito caro, chegou a R$ 600. Com água e luz, dava R$ 800. Ficou impossível pra mim>
Durante a pandemia, o flanelinha teve que se mudar da casa onde morava com a família, na Praça dos Quinze Mistérios, para um imóvel mais barato, no Barbalho: “O aluguel aqui ficou muito caro, chegou a R$ 600. Com água e luz, dava R$ 800”, conta. “Ficou impossível pra mim”.>
O advogado Imobiliário, Alex Medeiros Santos, analisou a existência da gentrificação e seus efeitos devido aos processos de revitalização, requalificação e reabilitação ocorridos na região, de 2000 até 2018. Segundo ele, em 2014 havia imóveis com preços de até R$ 6 mil o metro quadrado; atualmente, na Rua Direita e do Carmo, que são as mais valorizadas, o metro quadrado chega a R$ 8,2 mil.>
Através da pesquisa Gentrificação nos Bairros do Carmo e Santo Antônio Além do Carmo em Salvador: Uma Nova Realidade?, Alex Medeiros procurou entender como se dá a estruturação do espaço fundiário e analisar a relação entre os novos proprietários de imóveis e a área. A gentrificação corresponde ao processo de mudança imobiliária nos perfis residenciais e padrões culturais, seja de um bairro, região ou cidade. Esse processo envolve a troca de um grupo possuidor de menos recursos por outro com maior poder aquisitivo.>
O estudo demonstrou que a poligonal está diminuindo sua característica residencial, em um processo lento e silencioso, o que ocasiona uma perda da identidade local. “A tendência é a saída dos antigos moradores em razão do aumento dos custos para morar no bairro, bem como devido à especulação imobiliária, que inflaciona os imóveis, impedindo a permanência de famílias antigas no local, principalmente as que vivem de aluguel”, afirma o mestre em Planejamento e Desenvolvimento Social. Se o poder público não interferir, o bairro tende a virar um bairro boêmio, sustentado pelo turismo e aluguel de temporada, tornando-se, dessa forma, um ambiente inseguro fora do horário comercial, diz Alex Medeiros>
“Se o poder público não interferir, o bairro tende a virar um bairro boêmio, sustentado pelo turismo e aluguel de temporada, tornando-se, dessa forma, um ambiente inseguro fora do horário comercial, e no qual os moradores da cidade não vão querer morar. Tende a virar um ambiente estéril, como o Pelourinho, que, após a reforma, ficou sem moradores”, alerta. Frequentador do bairro desde 2014, quando passou a vir à Bahia, o chileno Gabriel Gallardo, 42, observa as mudanças: “As pessoas já estão começando a chamar de ‘Carmo’, com a ideia que ‘Carmo’ é mais chique que ‘Santo Antônio’. Acontece que aqui tem gente rica, mas tem também quem passa fome, tem essa mistura. Estamos em um bairro patrimonial de classe média, e acho que temos que respeitar isso”, destaca o cineasta, documentarista e escritor que, há um ano, escolheu morar no ‘Santo Antônio’. >
Dois dedos de prosa com Nivaldo Andrade, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Faufba), doutor em Arquitetura e Urbanismo>
- Como ocorreu o processo de urbanização do Santo Antônio?>
A ocupação do Santo Antônio Além do Carmo remonta ao início do século XVII, quando foi construído o Convento do Carmo, que foi o que promoveu o início da ocupação da região, seguido, ainda no mesmo século, pela construção do Forte e da Igreja de Santo Antônio Além do Carmo, localizados no largo do mesmo nome. Devo destacar ainda a construção do Guindaste dos Padres Carmelitas, que, na segunda metade do século XIX, deu lugar ao Plano Inclinado do Pilar, e que permitia, inicialmente, o transporte de mercadorias entre o porto da Cidade Baixa e o bairro. >
- Há restrições em relação a reformas e construções no bairro? >
Sim, o Santo Antônio faz parte do conjunto urbano do Centro Histórico de Salvador, que foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1959 e declarado Patrimônio Mundial pela Unesco em 1985. Com isso, qualquer intervenção – até mesmo a pintura das casas – precisa ser previamente aprovada pelo órgão, conforme estabelecido no artigo 17 do Decreto-lei nº 25, de 1937. Somente em 2017 o Iphan estabeleceu um termo de cooperação com a Faufba para que fossem feitos todos os estudos e elaborada uma proposta de normas e critérios de intervenção para o Centro Histórico de Salvador, o que inclui o Santo Antônio. Eu fiz parte dessa equipe, junto com outros professores da Faufba, e as propostas foram finalizadas recentemente e encaminhadas para o Iphan para análise e encaminhamentos, mas ainda não virou portaria. Por enquanto, as coisas continuam como sempre foram: os proprietários que desejam construir ou reformar seus imóveis precisam enviar os projetos arquitetônicos para o Iphan para apreciação prévia, e o órgão, a partir de um parecer técnico de um dos arquitetos do seu quadro, informará o que pode ser feito e o que não pode. >