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Tharsila Prates
Publicado em 27 de agosto de 2024 às 06:00
Francisco, um menino de olhos azuis, nascido em 19 de junho, assobiador de talento, torcedor do Fluminense, dono de uma bicicleta de pneus brancos, filho do autor de Raízes do Brasil. Esse é o narrador de Bambino a Roma, e a descrição cai como uma luva também ao autor do livro recém-lançado pela Companhia das Letras: o grande Chico Buarque. >
Na capa, letras menores - mas taxativas - avisam que se trata de Ficção. (Mas a foto é de Chico moleque, em cima da bike, na cidade italiana onde viveu dois anos de sua infância, entre 1953 e 1955, enquanto o pai, Sérgio Buarque de Hollanda, dava aulas na Universidade de Roma.)>
O compositor, cantor e ficcionista não deu entrevistas sobre o lançamento. As explicações, porém, estão todas no livro. Como diz a editora, é "um equilíbrio fino entre lembrança e imaginação". Aos 8, 9 anos, o protagonista comunica à mãe, de veia artística latente, o desejo de relatar as experiências no estrangeiro, onde tudo é estranho, e ela lhe dá um diário.>
Pensando melhor, ele diz, "eu não conseguiria descrever honestamente o que se passava à minha volta no dia a dia, pois mesmo as memórias mais recentes seriam retocadas à medida que eram escritas". Conclusão: "Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho. No futuro, a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido".>
E não faltam acontecimentos típicos da infância: mudança de endereço - e neste caso, de país -, escola e amigos novos, o deboche dos colegas na rua diante dos "estranhos", o aprendizado de novas línguas, a professora afetuosa, a vontade de desbravar lugares (a pé ou de bicicleta), a paixão juvenil, o interesse sexual, o afloramento de aptidões, o gosto pelo futebol e a descoberta da política, o ressentimento pela ausência do pai ("na escola, deviam achar que minha mãe era viúva")... Tudo narrado com a maestria de um vencedor do prêmio Camões pelo conjunto da obra, concedido em 2019 - Chico é autor de famosas peças, livros infantis e romances.>
Impossível não admirar a precisão e, por isso mesmo, a magia da escrita buarquiana quando conta sobre a viagem de navio com a família entre o Rio de Janeiro e Gênova. "Eu não olhava a baía, mas sim a espuma que o transatlântico fazia no mar, como que desarranjando o caminho de volta". Ou ao perceber que tudo no Velho Mundo era novo - e estranho -, mas nada mais estranho do que se dar conta "de que não havia gente preta na Itália".>
Em um Dia de Ação de Graças com festa na escola americana, onde os irmãos foram matriculados porque as italianas viviam em greve com ensino atrasado, o narrador detalha a fartura da data, o incômodo com as empadas de queijo "um tanto esturricadas" feitas pela mãe, o vazio pela falta do pai, a aversão à parte religiosa ("preferia ir embora"), o trauma do abuso cometido pelo professor e a revolta por ser motivo de chacota dos colegas e irmãos.>
Essa crescente emocional termina com um puxão de orelhas da mãe, pedindo a ele que não fosse tão egocêntrico. Quase toda mãe diz isso sobre a gente, não? Bem que o narrador tinha alertado: "Minha mãe, como de costume, foi injusta comigo". Isso não anula o reconhecimento das inúmeras qualidades da mulher que o colocou no mundo.>
Gosto pela música>
Foi com o violão da irmã mais velha, a quem "observava minuciosamente", que o narrador tentou aprender as notas, sem sucesso. Conta que ela não se furtaria a dar aulas do instrumento a ele, desde que fosse em outro violão. Foi aí que o narrador desistiu da música (teria que vender sua bicicleta) e "só bem mais tarde compreenderia que todo músico tem ciúme do seu instrumento".>
Se tudo isso, salpicado com imagens de cartas, bilhetes e fotos de família, tem a ver com o Chico de verdade, nem tem mais importância. >
Ao longo da narrativa, há pequenos trechos com o pé no futuro e pensamentos sobre a curiosidade do menino lá na frente: "Eu gostaria de conhecer o destino do Sam, do Jim, do Roy, do Teddy, do Dan, do Archie, teriam todos voltado para a América? Fizeram fortuna no Vale do Silício?". Poderíamos acrescentar: saberiam que eu me tornei um artista famoso?>
No último capítulo (sem spoiler, afinal, todos sabemos quem é o Chico - opa - o narrador), o garoto de calças curtas, dono de uma bicicleta niquelada de pneus brancos e que se sentia melhor entre as meninas é um músico conhecido, dedicado à literatura, que volta a Roma querendo visitar o apartamento de número 2 na Via San Marino, 12, onde passou dois anos de sua infância. E que, agora, está "atormentado pelas recordações", com "um velho projeto de escrever um livro de memórias romanas". Pronto. Está escrito.>
Bambino a Roma>
Autor: Chico Buarque>
Editora: Companhia das Letras>
Preço: R$ 80 (R$ 30, e-book) | 168 páginas>