Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 29 de julho de 2023 às 16:00
Há quase 35 anos, o ator baiano Ricardo Bittencourt, 58 anos, foi apresentar o espetáculo Recital da Novíssima Poesia Baiana em São Paulo, com o grupo Los Catedrásticos. Depois de uma apresentação, recebeu no camarim o diretor Zé Celso Martinez Corrêa, que havia ido assistir à peça por indicação do colega Fauzi Arap. >
Sempre performático, Zé Celso, bem ao seu estilo, ajoelhou-se aos pés de Ricardo e soltou esta: "O Marlon Brando brasileiro!". Lisonjeado, mas assustado ao mesmo tempo, o ator sentiu o peso da responsabilidade e reagiu: "PQP! Estou condenado por você o resto da minha vida, né? Porque, aos 25 anos, ouvir isso de Zé Celso...".>
Daquela noite em diante, os dois ficaram cada vez mais próximos, se tornaram amigos, praticamente irmãos, como reconhece o próprio Ricardo. A convite de Zé e de Marcelo Drummond, marido do diretor, o baiano passou a se hospedar com frequência no apartamento onde o casal vivia, no bairro do Paraíso, sempre que ia a São Paulo, até que um dia foi viver lá definitivamente.>
Era o mesmo apartamento que pegou fogo no último dia 4. O incêndio acabou provocando a morte de Zé Celso, aos 86 anos, dois dias depois. Ricardo estava no apartamento no momento do incêndio e chegou a ser hospitalizado, mas foi liberado e está bem.>
Logo depois da noite em que se conheceram, o diretor escreveu sobre a montagem baiana. Falou mal dela, mas poupou o elenco, como lembra Ricardo: "Escreveu um texto belíssimo, falou super bem da gente [o elenco tinha ainda Meran Vargens, Jackson Costa e Cyria Coentro]. Mas esculhambou a peça, disse que era a casa grande falando da senzala". Em tom de elogio, disse, ainda, que o grupo parecia mais uma banda de rock que um grupo de teatro.>
Zé passou quase dez anos tentando convencer Ricardo a participar de um espetáculo dirigido por ele. Mas o ator não conseguia ficar em SP: "Passava uma semana lá, começava a chorar, sentia saudades da Bahia e voltava pra Salvador. O diretor acabou montando As Bacantes em Salvador, em 1996, e finalmente Ricardo participou de um espetáculo dirigido pelo amigo.>
Os Sertões>
Mas foi só em 2001 que o ator participou mais intensamente de uma montagem de Zé Celso, que foi o épico Os Sertões, dividido em cinco espetáculos de ao menos quatro horas cada. Àquela altura, Ricardo já tinha se rendido a São Paulo e passou a morar na cidade, na casa de Zé e Marcelo. Sempre numa relação de "irmandade", como observa o ator. "Zé tinha uma vida super sexualizada com os atores, mas, para mim, o tabu é legítimo e estruturante: onde há irmandade, para mim não há possibilidade alguma de sexo".>
Marcelo, é verdade, teve, no começo, ciúmes da relação entre o futuro marido - ele se casaria com Zé formalmente em junho deste ano - e o amigo baiano. Tanto que, depois de Ricardo voltar de uma viagem a Salvador ainda na década de 1990, foi surpreendido com Marcelo com uma faca nas mãos, dizendo-lhe: "Venha!", como se o ameaçasse. Apesar de meio assustador, era, claro, uma brincadeira. "Eu disse: querido, você não entendeu? Eu sou IRMÃO! Então, gargalhamos e vibramos", lembra Ricardo.>
Além de Os Sertões e As Bacantes, o ator foi dirigido por Zé em O Rei da Vela, Fausto, Esperando Godot e outras. Ricardo diz que adorava ser dirigido por ele e lembra de uma ocasião em que, se fosse outro ator, talvez guardasse um trauma ou tivesse desistido de trabalhar com o diretor. Mas Ricardo entendeu como aprendizado.>
Numa cena de Os Sertões, ele vivia um Juazeiro e estava vestido com um parangolé de Hélio Oiticica (1937-1980). A fala inicial de Ricardo se resumia a duas palavras: "Verde intenso". Simples, não? Não para Zé Celso, que fez o Marlon Bando brasileiro repeti-las exaustivamente até encontrar a intenção certa na voz: "O elenco inteiro ficava deitado aos meus pés e, nisso, foram duas horas e meia repetindo apenas 'verde intenso'".>
Mesmo sempre inquieto, Zé parava para dar atenção ao outro. "Ele era dedicado ao outro, interessado no outro. Era um homem extremamente generoso, de solidariedade incondicional com todos. Zé e Marcelo têm a coisa do acolhimento. O Teatro Oficina [grupo criado por Zé Celso] tem essa coisa de acolher".>
Uma das marcas de Zé Celso era tirar a roupa dos atores no palco. Mas Ricardo conseguiu escapar daquela sina. "Eu sou libriano e, embora feio, sou um esteta. Se meu corpo não estivesse perfeito, ficaria desconfortável nu". Para o ator, dizer a Zé Celso que não queria ficar nu era uma forma de marcar sua existência: "Era como se eu dissesse a ele 'alto lá! eu preciso existir da minha maneira'". E, quando o diretor insistia muito para que Ricardo tirasse a roupa, ele respondia em tom de piada: "Peraí! Quem vai pagar a lipo?!".>
Por enquanto, Ricardo segue se recuperando emocionalmente do trauma do incêndio e da perda do amigo. Falar sobre tudo o que viveu faz parte do tratamento e é recomendação médica. Quando estiver em condições de retomar a vida, pretende levar a Salvador dois novos projetos, um com Luiz Marfuz - que foi seu primeiro diretor na Bahia - e outro em que será dirigido por Marcelo Drummond.>
Vai também se dedicar a manter o legado de Zé Celso, que estava muito feliz porque havia recebido pouco antes de morrer a notícia de que a Academia Brasileira de Letras estava interessada em publicar sua obra como dramaturgo. "Ele foi dormir feliz naquele dia", lembra Ricardo.>