ENTREVISTA

Scholastique Mukasonga e a literatura que refaz Ruanda: “Foi o destino que me fez uma escritora e não me arrependo”

Escritora ruandesa compartilhou com o Correio um pouco de sua trajetória na literatura e vivências no Brasil

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  • Luiza Gonçalves

Publicado em 30 de abril de 2024 às 05:00

 Scholastique Mukasonga durante a mesa Entre Afetos e Lutas no Café Literário na Bienal do Livro
Scholastique Mukasonga durante a mesa Entre Afetos e Lutas no Café Literário na Bienal do Livro Crédito: Divulgação

No último sábado (27), Salvador recebeu pela primeira vez uma das vozes mais importantes da literatura contemporânea para pensar a palavra como ferramenta da memória em prol da reconstrução da história de um país e da dignidade de um povo. Para a autora ruandesa Scholastique Mukasonga, 67, a escrita chegou como uma missão: carregar seu legado familiar e devolver a humanidade às pessoas mortas no genocidio étnico de 1994, que matou 800 mil pessoas Tutsis em Ruanda, incluindo 37 pessoas de sua família. Trinta anos depois, Scholastique tem nas palavras a cura da dor, o prazer da vida e a chance de propagar a história de Ruanda pelo mundo.

O Café Literário da Bienal da Bahia 2024 lotou. No palco falas firmes, vindas de uma figura sóbria e imponente. Na sessão de autógrafos, doçura e receptividade, que apesar da barreira linguística imposta pelo francês, chegava a cada pessoa da extensa fila nos sorrisos e abraços. Não há como não se comover, quem leu Scholastique Mukasonga sabe do poder de sua escrita ao conduzir a memória coletiva em ficção e autobiografia. E para quem não a conhece, trate de conhecer! Vencedora dos prêmios Renaudot, Ahmadou e Océans France e traduzida em mais de 20 línguas, Scholastique atualmente reside na França e é traduzida por aqui desde 2017, quando fez sua primeira passagem no país em Paraty. Em entrevista ao Correio, ela compartilhou um pouco de sua trajetória na literatura e vivências no Brasil.

Scholastique Mukasonga e suas obras
Scholastique Mukasonga e suas obras Crédito: Divulgação

Como a literatura chegou em sua vida, passando pela publicação de seu primeiro livro Baratas e como ela se desenvolve até a escritora que temos hoje?

Scholastique: Digo e repito: foi o genocídio em Ruanda que me tornou uma escritora e, acredito que, se não fosse por esse drama, não teria necessariamente me destinado a ser escritora. Foi o destino que me fez uma escritora, e não me arrependo, mas gostaria de ter chegado à literatura por outro caminho que não fosse o genocídio. Eu venho de uma região de Ruanda para onde os Tutsis foram deportados em 1960, chamada Nyamata, inabitável, onde só havia animais e a doença do sono devido à mosca tsé-tsé. E foi lá que cheguei com minha família. Eu tinha 3 anos na época, e cresci experimentando a discriminação. Tudo isso está escrito em Baratas. É realmente o único livro que eu sentia que precisava escrever para descrever a vida dos Tutsis em Nyamata desde 1960 até o início dos genocídios em 1994. Não escrevo sobre o genocídio de 1994 em si, já que não estava lá; cheguei à França em 1992. Se eu estivesse em Nyamata, não teria escapado dos machados dos assassinos. Todos em minha vila foram assassinados, até mesmo as casas foram assassinadas. Em Nyamata, testemunhamos massacres, mas ainda não era o genocídio. Ele foi preparado ao longo de 34 anos, e é sobre isso que escrevo. É a preparação que testemunhei até meus pais decidirem, em 1973, quando eu tinha 16 anos, que eu deveria partir porque havia aprendido francês. É por isso que tenho um bloqueio; só falo francês. Se não falasse francês, teria permanecido na vila e teria morrido como todos os outros. Decidiram que eu tinha um passaporte {pretexto} internacional e precisava sair, primeiro para o Burundi e depois para a França. Eu estava proibida de morrer, eu deveria ser a memória. Foi então que percebi que me restava ou ficar louca, o que seria mais fácil, ou responder ao meu chamado: tornar-me escritora. Não há outra maneira de ser guardiã de memórias tão pesadas senão pela escrita. Foi assim que escrevi Baratas, e como o livro teve uma boa recepção, me permitiu começar a falar sobre isso. Para corresponder ao que meus pais esperavam, escrevi também A Mulher de Pés Descalços, para reconhecer a coragem das mães. É o retrato de todas as mulheres de Nyamata e assim que me tornei escritora. Depois disso, escrevi outras autobiografias e cheguei ao meu primeiro romance, Nossa Senhora do Nilo, que teve um enorme sucesso. Quando ganhei o grande prêmio literário, as pessoas queriam me dizer: 'Mesmo que você não estivesse destinada a ser escritora desde o início, continue escrevendo'. E é isso que continuo fazendo.

O Nossa Senhora do Nilo foi o livro que te consagrou como escritora?

Scholastique: Exatamente! Eu fiquei realmente surpresa com a recepção de Nossa Senhora do Nilo. Eu não sabia o que estava fazendo ao escrever um romance. Sou uma escritora atípica. Eu disse a mim mesma: sei escrever, sei me fazer entender por escrito, mas criar uma obra literária, isso é outra coisa. Então, quando recebi o prêmio Ahmadou no Salão do Livro de Genebra, seguido pelo Renaudot, seguido pelo prêmio Océans, pensei: ‘acho que sei escrever romances’ (risos). Nossa Senhora do Nilo é inspirado em meu próprio internato, o Lycée Notre-Dame de Cité, onde vivi uma experiência excepcionalmente dolorosa em comparação com o que vivi em Nyamata. Em Nyamata, éramos todos Tutsis, então criamos solidariedade. Até o momento em que passei a fazer parte dos 10% de Tutsis permitidos pela cota nas escolas secundárias. Foi nesse Liceu, que era também uma escola de elite feminina, que realmente entendi o que significa ser chamada de 'Inyenzi Cafard' [barata] e ser tratada como uma, com todas as implicações que isso trazia.

Quais as principais mudanças que você observou na sua escrita durante esses anos de trajetória?

Scholastique: Os primeiros livros, eu os escrevi na dor. Baratas foi realmente doloroso e para me proteger. Eu tive que me colocar na posição de uma menininha de 3 anos, e depois de uma adolescente, observando o que acontecia ao seu redor, para que fosse menos doloroso. Em A Mulher dos Pés Descalços, estou na tristeza, mas ao mesmo tempo no afeto. É o livro da minha mãe, há afeto, é diferente, e depois vieram os outros livros. Era para revisitar o que não tinha escrito em Baratas, que era tão difícil de dizer, e depois mergulhei na ficção. Eu não estava mais na dor. Sempre disse que, eu partia completamente impregnada do veneno dessa história, a cada lançamento de um livro, evacuava uma parte do veneno e com Nossa Senhora do Nilo, acho que evacuei três quartos. Até o dia em que ouvi a palavra 'resiliência' ser usada para me descrever. Isso vem como uma surpresa até descobrir que, de fato, a resiliência se aplica a você, que você conseguiu criar uma outra vida que não é a sua vida original antes do grande sofrimento, que você emergiu do grande sofrimento e encontrou uma maneira de viver com ele, não digo confortavelmente, mas de viver com ele e, assim, olhar para a vida e redescobrir seu lugar nela. Então, estou reaprendendo a aceitar e a amar essa vida. Agora, quando escrevo, é realmente por prazer, foi assim que me voltei para os livros sobre a tradição ruandesa, como Kibogo, por exemplo.

Kibogo Subiu ao Céu ganhou tradução recentemente para o portugues. Pode falar um pouco mais sobre o livro?

Scholastique: Neste livro não há absolutamente nada sobre o genocídio. Há a tradição e os anciões falando. É um livro sobre religião, a guerra entre a religião tradicional e a religião católica. Ruanda foi cristianizada, missionários buscavam estabelecer um reino cristão no centro da África e Ruanda foi escolhida. Então, o rei Mussenga, que se opôs ao batismo, foi deposto. E foram até seu filho, o Daiwa, que aceitou ser batizado e a partir daí, como o rei estava sendo batizado, todo o povo tinha que seguir. Nossas crenças tradicionais foram varridas e hoje estamos recuperando-as. Em Kibogo, quero me divertir, colocando lado a lado o Jesus branco e o Jesus ruandês. E Kibogo subiu aos céus. Assim como Jesus subiu aos céus, Kibogo também subiu porque foi buscar a chuva. São os conhecimentos conservados pelos anciões, de forma sincrética e que hoje nos ajuda a reconstruir Ruanda.

30 anos após o massacre em Ruanda: como é ter esse ‘título’ de uma escritora que reconstrói seu país através das palavras?

Scholastique: Quando o massacre aconteceu, eu era uma dos ruandeses que tinham a responsabilidade de reconstruir, não apenas Ruanda, mas também nosso povo. As novas autoridades ruandesas assumiram essa responsabilidade e a primeira coisa que fizeram foi pedir que todos os ruandeses exilados no exterior, retornassem, e isso era o que sonhávamos há muito tempo. Mas eu não pude voltar. Eu disse a mim mesma que seria útil do lado de fora, porque voltar significaria entrar em um país onde toda a minha família já não estava mais lá, era muito difícil. E então, a literatura veio me dar a oportunidade de me associar ao que estava acontecendo, ao que estava sendo feito em Ruanda, de contribuir, de trazer minha pedra para a construção. Quando se trata de literatura, é verdade que hoje sou lida por muitas pessoas. Vou de país em país e percebo que a literatura tem seu lugar na reconstrução do meu povo e do meu país. Ainda hoje em alguns países onde vou, sou esperada por um público que descobre esse último genocídio do século XX nos meus livros e foi aí que percebi a importância dos escritos. E os ruandeses sabem disso. Trilhamos o caminho para afirmar: genocídio nunca mais.

No Brasil nós temos episódios históricos de opressão, como notavelmente é a escravização. Alguns autores rememoram esses episódios para discutir e dar a devida visibilidade às suas consequências, tendo em vista que por muito isso era um assunto visto como “melhor não falar disso”. Sei que você já esteve no Brasil algumas vezes, em contatos com autores como Conceição Evaristo, queria saber se e como percebeu isso enquanto esteve aqui. Você acredita que esse movimento se assemelha a sua obra de alguma forma?

Scholastique: Desde 2017 eu frequento bastante o Brasil, exceto nos anos da pandemia, e exergo que a dificuldade em relação a essa temática, não é com a história de escravidão, e sim a dificuldade que se teve de falar abertamente sobre ela e suas consequências. Há uma recusa. Há escritores como Conceição e Itamar Vieira Junior que falaram sobre isso, que realmente exploraram isso em seus escritos. Não devemos subestimar o poder da escrita. Talvez não vejamos o resultado imediato, mas devemos insistir. Devemos começar mantendo o otimismo, é verdade que é um longo caminho, mas nunca se deve desistir. Após 34 anos de sofrimento, não desistimos, e um dia isso acabará acontecendo, e haverá um mundo melhor. Para curar o Brasil, precisamos continuar a libertar a palavra, a dizer as coisas como realmente foram. É com isso que podemos avançar.

É a sua primeira vez em Salvador, queria saber qual a expectativa para sua vinda a cidade?

Scholastique: Venho realmente com toda a minha curiosidade para descobrir esse lugar. Para um escritor é sempre uma grande felicidade, uma recompensa poder encontrar seus leitores e o Brasil sempre me recebeu de braços abertos, desde minha primeira vinda no Festival de Paraty. Não acredito muito em milagres, mas senti como se fosse um quando o presidente Lula me convocou em sua residência, como ‘uma mulher que escreveu um livro que interessa a todos os brasileiros’. Fiquei muito tocada por essa recepção. Além disso, o Brasil tem tudo, tem tudo o que qualquer ser humano pode desejar, é um país plural e os brasileiros têm algo muito forte, que eu encontrava em meu país, mas não encontro hoje em dia. Há uma humanidade de tocar, de se aproximar. Este ano estou bem ocupada, mas digo que se é pelos meus amigos, meus irmãos brasileiros, eu deixo de lado o que puder, venho com a maior felicidade, pois me sinto em casa.