'Que atriz feia': série da Netflix desperta discussão sobre beleza física da protagonista

Emma vivida por Ambika Mod em 'Um Dia'  foi rotulada de 'feia' nas redes; no Brasil, Alice Carvalho, a Joaninha de 'Renascer' também foi alvo de comentários por conta da aparência

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  • Priscila Natividade

Publicado em 5 de março de 2024 às 08:57

Casal da nova versão de 'Um Dia' é protagonizado pela atriz Ambika Mod e o ator Leo Woodall
Casal da nova versão de 'Um Dia' é protagonizado pela atriz Ambika Mod e o ator Leo Woodall Crédito: Teddy Cavendish/ Netflix

Quantos filmes de romance já disseram às mulheres que, para serem vistas e amadas, primeiro precisariam se mostrar fisicamente desejáveis? Boa pergunta. Principalmente para quem se deparou nas últimas semanas com os milhares de comentários circulando nas redes sociais que rotulavam a mocinha da nova série romântica da Netflix como “feia para ser colocada como protagonista”. Houve também quem escrevesse que “não conseguiu sentir carisma na atriz”, que “achou o casal estranho” ou “não sentiu química”.

Um Dia (Reino Unido, 2024), adaptação do best-seller de David Nicholls, chegou ao streaming no último mês e vem, por semanas, alcançando o topo das paradas da Netflix, ocupando a segunda posição do Top 10 Global. Segundo números da plataforma, foram mais de 7,5 milhões de visualizações da série de 14 episódios curtinhos que mostram a história de amor ‘impossível’ entre Emma e Dexter, vividos por Ambika Mod (This is Going to Hurt) e Leo Woodall (The White Lotus), com criação e roteiro de Nicole Taylor.

A gente poderia dizer que a história é quase a mesma da versão de 13 anos atrás do longa estrelado por Anne Hathaway (O Diabo Veste Prada) e Jim Sturges (Across the Universe): uma festa aleatória, 15 de julho, um casal e 20 anos de encontros e desencontros - e aqui eu paro de contar mais para não cair em um spoiler, caso alguém ainda não tenha assistido ou lido o livro. Até aí, tudo bem, se a produção da Netflix não trouxesse para os holofotes a grata surpresa de uma Emma de origem indiana, empoderada, ácida e politizada, que rasga e joga para cima qualquer ‘rótulo Hathaway’.

Foram mais de 7,5 milhões de visualizações da série que ocupa o Top 10 Global da Netflix
Foram mais de 7,5 milhões de visualizações da série que ocupa o Top 10 Global da Netflix Crédito: Ludovic Robert/ Netflix

“Nosso olhar e, por consequência, nossa concepção de beleza vem sendo treinada há décadas pela produção audiovisual hollywoodiana. Nosso imaginário sobre quais corpos merecem figurar nas telas foi e é alimentado pelas obras de arte e de entretenimento que estabelecem a branquitude como norma e a beleza como uma das principais qualidades esperadas das mulheres. Pele branca, corpo magro, cabelos lisos e/ou cuidadosamente modelados compõem um padrão proclamado”, analisa Kellen Xavier, doutora em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM/UFMG) .

Você se apaixonaria por uma Emma ou Dexter na sua vida? Ambika Mod, incomoda. “A atriz é ‘feia’ porque não é branca e incomoda uma história de amor em que uma mulher não precisou pagar o pedágio da beleza para ser amada e admirada – não só pelo seu ‘grande amor’, mas como por vários outros homens. A Emma de Ambika Mod parece concebida para ser menos dócil à personalidade efusiva da Dexter, transmite mais de um humor atribuído ao Reino Unido, talvez menos gentil à autoestima frágil dele”, acrescenta a especialista.

Britânica e filha de pais indianos imigrantes, a atriz do reboot da Netflix tem 29 anos e é comediante. O trabalho mais conhecido de Ambika Mod é na produção This is Going to Hurt, onde ela dá vida a Shruti Acharya, uma médica júnior. A atriz deve aparecer novamente em breve, dessa vez em uma série de suspense da Disney+. Ainda sem data para estrear no Brasil, Playdate é uma adaptação do romance homônimo de Alex Dahl, que conta a história de uma mãe que teve seu filho sequestrado.

"A atriz é ‘feia’ porque não é branca e incomoda uma história de amor em que uma mulher não precisou pagar o pedágio da beleza para ser amada e admirada"

Kellen Xavier
 doutora em Comunicação Social pela UFMG

As ‘Emmas’ desconstruídas não ganham mais protagonismo nas telas por um acaso, como argumenta Kellen Xavier: “Investir mais em ‘diversidade’ tem sido uma estratégia adotada pelas produtoras audiovisuais para tentar estabelecer diferenciais em relação à produção cinematográfica de Hollywood e à TV aberta dos Estados Unidos. Independentemente de quando as mudanças étnicas ou de padrão corporal são bem recebidas ou não, elas movimentam comentários da mídia e nas redes sociais, o que colabora na divulgação das obras. Por outro lado, expandir as representações na mídia contribui para que mais pessoas se vejam nessas obras e que mais pessoas possam também vislumbrar o entretenimento como caminho profissional”.

Forma e expressão

No Brasil, a atriz potiguar Alice Carvalho, a Joana do remake de Renascer (Globo, 2024), também foi alvo de comentários sobre a sua aparência, ao ser rotulada de “feia” e “inadequada” para o papel. Na versão anterior, a personagem foi vivida por Teresa Seiblitz. Ainda que a atriz tenha tido um imenso destaque como Dinorah Vaqueiro, na bem-sucedida série Cangaço Novo (Amazon Prime/2023), inúmeras postagens que circulam nas redes são até preconceituosas.

Em Renascer, Alice Carvalho,  é  Joaninha, personagem que foi interpretado pela atriz Teresa Seiblitz na primeira versão da novela
Em Renascer, Alice Carvalho, é Joaninha, personagem que foi interpretado pela atriz Teresa Seiblitz na primeira versão  Crédito: Rede Globo/ Divulgação

“Algumas posturas e alguns corpos atraem mais simpatia e solidariedade do que outros. Temos uma história de narrativas que trataram mulheres como frágeis de modo a afirmar o poder dos homens. Precisamos ver as outras e a nós mesmas de formas mais gentis com nossas qualidades - que vão além de sermos bonitas e/ou agradáveis para as outras pessoas”, completa Kellen Xavier.

Para a psicóloga Bárbara Guimarães, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e professora de Psicologia da UniRuy Wyden, mesmo diante de movimentos que desnaturalizem um padrão hegemônico físico e estético, ainda existe um caminho longo a ser percorrido frente as reações internas e externas provocadas por essa idealização do que é belo.

“É preciso descolonizar nossa estética também. Mas, talvez, seja uma conversa que muitos e muitas não conseguem ter ainda. E se a protagonista fosse mais velha? Teríamos outro viés da mesma moeda. Ainda temos muito que avançar e precisamos falar mais sobre os padrões de beleza, de relações, de convenções. As coisas e pessoas são como são e são belas naquilo que conectam”. E esse é só o começo: “Contra este novo momento de desconstrução, temos muitos séculos de ideal de beleza colonialista eurocêntrico”, defende.