A mocinha sem sol faz luz nas trevas, apenas imagina e respira

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 10 de junho de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Lugar qualquer. Época imprecisa. Mocinha qualquer de 15 anos, cabelos cortados à la garconne, feito mocinho, está por trás da vidraça fechada da janela. Nome? O narrador não quer lhe dar nome algum. Certo apenas que chove na praça onde a mocinha mora. Ela imagina e sente a atmosfera exterior. Tarde nublada. Chuviscos batem com fúria no vidro transparente, que tremelica. A mocinha, também.

Tem vento? Tem, sim, sinhô! E o vento assovia nem forte nem fraco num murmúrio repetitório quase de cantochão. Serve apenas para pentear as árvores nunca podadas da pracinha sem graça – e a mocinha imagina – só imagina – pente enorme desfiando folhas e derrubando frutos chochos e podres.

A mocinha que não tem nome ama chuvas e tardes nubladas e úmidas assim. Sente-se feito pipa rodopiando sobre a pracinha sem graça. Não há pai. Não há mãe. Não há irmãos. Todos partiram. Não sabe para onde foram, se morreram ou se embarcaram para marte ou vênus ou júpiter ou netuno ou plutão ou saturno ou urano ou mercúrio. A mocinha não demonstra interesse em saber.

Agora apenas fazem companhia à mocinha 1 leão anão eunuco, gordo, cego e carinhoso +  1 mocetona roliça mas rija que lhe cuida o tempo inteiro com mãos firmes, fortes e cheias de veias + essa janela envidraçada pela qual vislumbra o mundo como quer que o mundo seja – mundo real ou imaginário pouco se lhe dá. Quem se importa com isso?, pergunta-se a mocinha com certa periodicidade.

Sente muitas dores a mocinha, se vê tendo os olhos furados a mocinha, mas em tardes nubladas e cerradas assim nada sente, nada lhe fura os olhos, nada lhe dói. Apenas aspira e respira – sussurra verbo que ouviu da boca de outrem e nunca esqueceu – ‘cerrrou’ – e sorri riso pequeno de dentes tortos e carcomidos.

Então a mocinha respira fundo e sente ou imagina sentir mão cheia de veias que parece ser de homem enxugando a parte externa da vidraça. A mocinha não se assusta. Entrega-se. Deixa o que parece ser mão de homem lhe acarinhar o rosto envidraçado – ela não percebe, mas o narrador percebe, e conta: a mão não tem rosto nem resto, a mão não tem corpo.

[O narrador onisciente vê mão sem rosto nem corpo que parece ser de homem massagear, suave, a face envidraçada da mocinha. Ela  reage a cada carinho de maneira contrita, quase lasciva a ponto de, vez em quando, morder e lamber os lábios].

Trovão inesperado e tonitruante assusta a mocinha cega. Seguido de relâmpago que faz tarde-noite virar dia por alguns segundos. Chorosa, a mocinha cega recua em direção à cama e pisa no leão eunuco gordo, cego e sem nome – que, surpreendido, ruge castratti, fino e agudo – e a mocetona roliça mas rija que toma conta de tudo entra em cena e, feito aplicada contrarregra de palcos de teatro, ajeita a cena do jeito que sempre lhe apraz.

Alta madrugada. No quarto escuro e abafado a mocinha cega e sem nome e o leão anão eunuco, cego, gordo e sem nome dormem abraçadinhos como se fossem pequenos amantes – e são. Foram feitos – ou melhor, criados pelo narrador – um para o outro feito unha e cutícula.