Baile de Rebeca: ginasta superou dificuldades até prata histórica

Paulista se tornou a primeira atleta do Brasil a conquistar uma medalha na ginástica feminina dos Jogos Olímpicos

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  • Giuliana Mancini

Publicado em 30 de julho de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ricardo Bufolin/CBG

Mulher, negra, filha de uma mãe solo que, com o emprego de doméstica, sustentava oito filhos. Todos dormiam no mesmo cômodo de uma pequena casa, localizada na periferia. Essa é uma trajetória parecida com a de muitos brasileiros. E é a de Rebeca Andrade, 22 anos, a primeira ginasta do país (entre as mulheres) a conquistar uma medalha nos Jogos Olímpicos.

A paulista de Guarulhos fez história na quinta-feira (29), ao conquistar a prata na final do individual geral em Tóquio. Embalada pelo som do Baile de Favela, Rebeca teve um ótimo desempenho na disputa e encerrou com 57,298 pontos. Ficou atrás da americana Sunisa Lee, que somou 57,433 pontos e ganhou o ouro. A russa Angelina Melnikova, com 57,199, levou o bronze. Rebeca em sua apresentação no solo durante a final (Foto: Jonne Roriz/COB) No Centro de Ginástica Ariake, Rebeca começou a final no salto, sua especialidade. Teve execução praticamente perfeita, com um leve desvio de trajetória, e recebeu notão para abrir na liderança: 15,300. Em seguida, cravou a série nas barras assimétricas, acertando ligações de movimentos que não havia conseguido nas classificatórias, e ganhou 14,666.

Sua maior adversária, a americana Sunisa Lee, tirou a diferença no terceiro quesito, a trave. Rebeca chegou a ficar na terceira posição, mas sua equipe entrou com um recurso e, após análise, a arbitragem subiu a nota para 13,666. Estava na segunda colocação, só um décimo atrás de Lee.

Eis que chegou o momento do solo, o último dos quatro aparelhos na ginástica feminina. A americana fez uma prova muito boa, conseguiu 13,700 pontos e seguiu no topo. Rebeca foi a última das favoritas a competir. Cometeu dois pequenos erros, que lhe custaram 0,40 de desconto e tiraram o ouro. Mas a apresentação garantiu 13,666 pontos e a inédita prata. A brasileira mostra a medalha conquistada em Tóquio (Ricardo Bufolin/CBG) Rebeca chegou à final como uma das favoritas, após receber a segunda melhor soma de notas da etapa classificatória. Avançou atrás apenas da estrela Simone Biles, seis vezes medalhista olímpica. Mas a americana, maior nome da ginástica artística atual, não entrou em ação. Em uma decisão corajosa, se afastou da final alegando que precisa cuidar da saúde mental.

Simone, porém, fez questão de acompanhar a disputa de pertinho, da arquibancada. E vibrou com as apresentações de Rebeca. Quando a brasileira terminou as barras assimétricas, Simone foi flagrada aplaudindo efusivamente. E se empolgou ainda mais ao som do Baile de Favela, batendo palmas no ritmo que embalava a paulista.A música escolhida se tornou um marco, assim como fez Daiane dos Santos, nos anos 2000, com o icônico Brasileirinho. A apresentação é lembrada até hoje, apesar de não ter rendido uma medalha olímpica. Ontem, Rebeca, que nunca escondeu que Daiane era sua inspiração - e, inclusive, era chamada de 'Daianinha de Guarulhos' - foi mais longe. Realizou o sonho olímpico, dando uma incrível continuidade ao legado da ex-ginasta.Os primeiros passos Rebeca começou na ginástica por incentivo de uma tia. Funcionária pública, ela teve que cobrir a licença de uma outra pessoa que trabalhava no Ginásio Bonifácio Cardoso, em Guarulhos (SP), e viu que estavam abertas as inscrições para testes de novos atletas. Resolveu levar a sobrinha, que tinha muita energia e adorava pular. Neste dia, Rebeca ganhou o apelido de 'Daianinha'. Tinha 4 anos na época, enquanto Daiane fazia história com o título mundial no solo.

Não demorou muito para que chamasse atenção. Técnica da equipe de ginástica de Guarulhos e árbitra internacional, Mônica Barroso dos Anjos descobriu Rebeca e começou a treiná-la. Em pouco tempo, a jovem entrou em um grupo de alto rendimento, competindo em nível estadual, brasileiro e até mesmo num interclubes em Cuba, em 2009.

O caminho não foi fácil. A mãe de Rebeca, Rosa Santos, enfrentou dificuldades para que a jovem continuasse treinando. Empregada doméstica e com oito filhos, Rosa nem sempre tinha dinheiro para manter a menina prodígio no projeto. Quando faltava, a ginasta ia a pé, em um trajeto de mais de duas horas. Depois, um irmão mais velho comprou uma bicicleta para levar e buscar a irmã. Rebeca e a mãe, Rosa (Foto: Reprodução/Instagram) Quando Rebeca parou de frequentar os testes por falta de dinheiro, os treinadores intervieram e não deixaram ela abandonar o esporte. Sabendo a joia que tinham nas mãos, criaram um esquema de rodízio para levá-la até o local de treinamentos. 

Aos 9 anos, a menina recebeu um convite da técnica Keli Kitaura: deixar de vez o lar de sua família e ir para Curitiba, treinar no Centro de Excelência de Ginástica do Paraná. Dona Rosa foi chamada de doida, mas deixou a filha seguir seu sonho no esporte. Rebeca passou por dias ruins e ligava chorando para a mãe pedindo para voltar para casa. Rosa acalmava a filha e pedia para que tentasse mais um dia. 

Em 2011, Rebeca foi convidada para treinar no Flamengo, onde está até hoje. Logo foi apontada como a nova promessa da ginástica. Em 2013, aos 14 anos, foi campeã brasileira, com notas mais altas que Daniele Hypolito. As lesões, porém, começaram a aparecer.Classificada para a Olimpíada da Juventude de Nanquim-2014, ficou de fora por causa de uma cirurgia no pé. No ano seguinte, participaria do Pan de Toronto, mas sofreu uma ruptura do ligamento cruzado anterior do joelho direito. Passou por cirurgia, com oito meses de recuperação. Ali, cogitou mais uma vez desistir. E recebeu uma bronca de Dona Rosa, que impediu.Em 2016, chegou à Olimpíada do Rio cotada para uma medalha, após ser a terceira da fase de classificação no individual. Mas cometeu erros na final e terminou em 11º lugar. No ano seguinte, mais uma lesão e segunda cirurgia do joelho direito. 

A brasileira foi submetida a uma terceira operação em 2019, que quase custou sua participação olímpica. Rebeca não pôde disputar o Mundial de Stuttgart, que dava vaga para Tóquio. Teria que correr contra o tempo para disputar um novo campeonato qualificatório em 2020. E então veio a pandemia do coronavírus e o cancelamento dos eventos esportivos.  Rebeca em recuperação após a cirurgia em 2019 (Foto: Reprodução/Instagram) O adiamento dos Jogos foi benéfico para a ginasta, que ganhou um ano a mais para se preparar para o Campeonato Pan-Americano. A competição aconteceu em junho deste ano, a brasileira venceu o individual geral e confirmou a passagem para o Japão. E para a história.

“Essa medalha não é só minha, é de todo mundo. Todos sabem da minha trajetória, o que eu passei. Se eu não tivesse cada pessoa dessa na minha vida, isso aqui não teria acontecido. Tenho certeza disso. Sou muito grata a todo mundo mesmo. Acho que mesmo se eu não tivesse ganhado a medalha, eu teria feito história, justamente pelo meu processo para chegar até aqui. Não desistam, acreditem no sonho de vocês e sigam firmes”, comemorou a atleta em entrevista à TV Globo após a conquista.

Rebeca terá mais duas disputas de medalha em Tóquio, nas finais por aparelho, e tem chances reais de pódio em ambas. A decisão do salto será no domingo (1º), às 5h45 de Brasília. No mesmo horário, mas no dia seguinte, tentará um lugar no pódio do solo.