O Axexê desata os laços dos mortos com os viventes; entenda

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • D
  • Da Redação

Publicado em 28 de dezembro de 2018 às 15:46

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Conheci Mãe Stella em 1985, quando ainda era adolescente e sempre fui guiado e acalentado por ela, seu olhar sempre sereno e seguro sempre a me dizer vá em frente, mesmo que haja intricados meandros, e lá ela sempre esteve comigo, meu porto seguro.

Para mim é muito duro ter que sair da posição de enlutado enquanto filho-de-santo, ogã de Oxum e passar para condição de escritor, ensaísta ou antropólogo, ter que engolir o soluço e enxugar as lágrimas. Mas, faz-se necessário ressaltar a importância das tradições afro-brasileiras preservadas na diáspora africana e dizer que no Ori de Mãe Stella está o depositário de todos aqueles que para cá vieram na condição de pessoas escravizadas.

Nesse ori contém o que se chama axé, e ela é hoje no Brasil, uma referência nessa preservação de axé. Assim como como a responsável por todas as cabeças de seus filhos de santo. Ela nasceu Maria Stella de Azevedo, mas se tornou Odé Kaiodê, o caçador que traz alegria, e ao se tornar mãe-de-santo passou a construir uma conexão com todos aqueles que foram iniciados por ela e não desfazer esses vínculos podem acarrear problemas nas vidas de todos, pois ela nunca passará para outra dimensão atrapalhando o caminhar de cada um.

Ela, além de ser a Iyalorixá da roça do Opô Afonjá tornou-se também Mãe Stella da Bahia, mãe espiritual de todos aqueles que a procuraram para um conselho, um colo, nos diversos campos dos saberes: da arte, da economia, da política, do futebol."Ao se tornar mãe-de-santo passou a construir uma conexão com todos aqueles que foram iniciados por ela e não desfazer esses vínculos podem acarrear problemas nas vidas de todos, pois ela nunca passará para outra dimensão atrapalhando o caminhar de cada um."Impedir que os ritos propiciatórios do enlutamento de Mãe Stella ocorram em sua casa, onde foi entronada mãe-de-santo, é mais que uma atitude arbitrária, uma violência simbólica, posto que os adeptos acreditam que é saindo de seu Ilé Axé, sua casa espiritual, que seu espírito deve ir ao Orum, ou ao intulá ao encontro das mães fundadoras dos candomblés e todos seus ancestrais, para que continue sendo louvada e venerada como um uessa, um ancestral ilustre na casa, uma mãe ancestral no Orum nos guiando aqui na terra.

Impedir ritos mortuários a minha Mãe Stella é uma violência cultural, um ato descabido de intolerância religiosa para com a visão de mundo afro-brasileiro, típico de pessoas incrédulas e desrespeitosas com a noção de cultura, valores e ethos comunitário. Os ritos são formas zelosas e secretas dos encontros com África que está grafada em nossos corpos, nas nossas vozes, nas nossas sensibilidades e o desvinculamento dos vínculos construídos e estabelecidos na iniciação da mãe de santo devem ser realizados para que logo feito no velório der início ao Axexê, a volta as nossas origens na África.

O Axexê é um evento performativo, que se propõe a desatar os laços dos mortos com aqueles do mundo dos viventes, na medida em que eles conservam, por algum tempo, determinados poderes e direitos (mais ou menos duradores) entre a comunidade, dependendo das quais posições ocupavam na hierarquia. Os ritos mortuários são, simultaneamente, atos de despedida e um gesto de exclusão, que deve ser compreendido como uma inserção na nova vida, numa nova sociedade: a do “outro mundo”.

Segundo os nagôs, o homem que deixa o corpo terrestre para se reunir a seu Ipori no Orum apenas abandona seu rosto humano, conservando sua família, sua linhagem, seu clã e o povo, no qual o Orixá colocou no momento de sua criação.  Como já sinalizado no início do texto, o rito se destina à separação adequada dos elementos vitais da existência individualizada, o Orí (cabeça), o Inu (órgãos internos) e o Ipori/ou Emi (alma). Nos terreiros de candomblé, os mortos são chamados de Eguns e fazem circular as suas mensagens, ao mesmo tempo em que criam canais de comunicação com os vivos, seja por meio dos “eventos de possessão” nos médiuns, pelo oráculo, ou pela materialização sob a forma humana sob vários tecidos e tiras -- os Baba Eguns. Os mortos falam por suas metáforas e por suas metonímias."Impedir ritos mortuários a minha Mãe Stella é uma violência cultural, um ato descabido de intolerância religiosa para com a visão de mundo afro-brasileiro, típico de pessoas incrédulas e desrespeitosas com a noção de cultura, valores e ethos comunitário."Os ritos mortuários nos terreiros de candomblé iniciam no momento em que se tem a notícia comprovada da morte de um dos membros do terreiro. Imediatamente, os filhos do terreiro trocam as roupas coloridas pela branca; usam as roupas mais simples, chamadas de “roupas de ração”: saias e camisu para as mulheres e calça pijama e camisa para os homens. As mulheres enrolam o pescoço e os ombros com o pano-da-costa branco, em forma de xale, e todos cobrem as cabeças. As mulheres com turbantes e os homens com um gorro. A cor branca é o símbolo do Orixá Oxalá, considerado como pai dos vivos e dos mortos. Dentro do sistema cultural nagô, branco é a cor de Oxalá e do enlutamento. Após a troca das roupas, os assentamentos dos Orixás do morto são retirados dos altares e colocados no chão no quarto que é arrumado para o evento, ou no ilê Ibo Iku,

São convocados os especialistas religiosos que lidam com os assuntos relacionados à morte e aos ancestrais, os homens, para manipularem o corpo do defunto. A ausência do espírito no corpo, do fluxo vital, da corrente sanguínea, dos órgãos e sistemas, remove a sua composição de ser-no-mundo. O corpo passa a ser considerado como dotado de uma carga perigosa, por não ter nada que comprove a sua relação com o mundo, estando entregue ao invisível, ao imponderável, a algo indescritível. No corpo do morto, será efetivada uma “obrigação”, considerada de “alto fundamento”, que consiste na retirada simbólica do oxu, que foi assentado no ato da iniciação. Esse é uma parte do rito fúnebre extremamente secreta reservada a poucos iniciados.

Nos terreiros tradicionais ocorre o cortejo fúnebre à “moda africana”, no caso dos dignitários sacerdotes. O cortejo fúnebre “à moda africana” consiste em ir à tumba dançando, enquanto os ogãs e pais-de-santo seguram o caixão, ao som de canções apropriadas para o evento. A dança é efetivada com três passos para frente e dois para trás. Nesse instante, a presença do Orixá Iansã é indispensável, pois ela é responsável por transmigrar o espírito para o Orum. O corpo é, por fim, depositado em uma cova rasa no chão, por razões que atendem à própria gênese mitológica do homem na concepção nagô, quando se gera uma comoção inevitável entre o transe dos Orixás e o choro dos vivos. Após o enterro espera-se saber a data do Axexê, se tratando do pai ou a mãe-de-santo o Axexê ocorre após a volta do cemitério."No corpo do morto, será efetivada uma “obrigação”, considerada de “alto fundamento”, que consiste na retirada simbólica do oxu, que foi assentado no ato da iniciação."Os pais, mães e filhos-de-santo são afetados ao desenrolar do evento performativo, numa relação de porosidade entre a ideia de mundo dos mortos com suas vidas, oferecendo-lhes suas últimas dádivas, no sentido de prestações rituais, as premissas votivas: músicas, danças com banquetes sofisticados e esteticamente elaborados e entrega de moedas.

O rito obedece a uma gramática em todas as nações de candomblé com danças, cânticos e entrega das moedas na cuia de cabaça, com as peculiaridades de cada uma delas, assim como de cada casa, obedecendo a distinções hierárquicas para os indivíduos adoxus (os que ao serem iniciados receberam um oxu, massa cônica na cabeça, que possibilita o transe dos Orixás).

No evento performativo do Axexê se reverencia a divindade Iku é encomenda o Egum ao mundo dos mortos, passando da liminaridade para a categoria de ancestral divinizado cultuado dentro do terreiro, levando em conta a posição que ocupava em vida. O Axexê reconstrói uma síntese da concepção de morte africana celebrada com muitos cânticos, danças, comidas e oferta do sangue de aves e quadrúpedes durante seis noites e uma tarde.

Segundo os mitos pretéritos da tradição nagô, os itas, a morte tem o nome de Iku, e é considerada com uma divindade errante, que não fica em lugar algum, filho de Odudua com Obatalá, e forneceu o material primordial para criação dos homens. Quando todos os Orixás se recusaram a pegar a lama a entidade Iku foi lá e a pegou. Coube-lhe, então, a incumbência de devolvê-la, sempre, ao mesmo local."No Axexê os indivíduos mergulham na experiência religiosa, com uma dimensão corporal da emoção, como cognições encarnadas pelos afetos recebidos e trocados pelo seu entorno, cria novos canais de comunicação com seus sentimentos e emoções, enquanto pensamentos encarnados."Outro mito nagô, contado pela minha hoje já saudosa Mãe Stella de Oxóssi do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, sobre a origem do Axexê diz que: Vivia em terras de Keto um caçador chamado Odulecê. Era o líder de todos os caçadores. Ele tomou por sua filha uma menina nascida em Irá, que por seus modos espertos e ligeiros foi conhecida por Oiá. Oiá tornou-se logo a predileta do velho caçador, conquistando um lugar de destaque entre aquele povo. Mas um dia a morte levou Odulecê, deixando Oiá muito triste. A jovem pensou numa forma de homenagear o seu pai adotivo. Reuniu todos os instrumentos de caça de Odulecê e enrolou-os num pano. Também preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear. Dançou e cantou por sete dias, espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto, fazendo com que se reunissem no local todos os caçadores da terra. Na sétima noite, acompanhada dos caçadores, Oiá embrenhou-se mata adentro e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulecê. Nesse instante, o pássaro "agbé" partiu num vôo sagrado. Olorum, que tudo via, emocionou-se com o gesto de Oyá-Iansã e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos em sua viagem para o Orum. Transformou Odulecê em orixá e Oiá na mãe dos espaços sagrados. A partir de então, todo aquele que morre tem seu espírito levado ao Orum por Oiá. Antes, porém deve ser homenageado por seus entes queridos, numa festa com comidas, canto e dança. Nascia, assim, o ritual do axexê.

Odulecê é um dos títulos do Orixá Oxóssi que é o primeiro a ser reverenciado no Axexê com uma série de cantigas que fazem referência a sua qualidade de ser o primeiro ancestral venerado. Nessa hora a dança é executada, apenas, pela mãe ou pai-de-santo, representantes de Oxóssi, enquanto todos permanecem ajoelhados com as mãos estendidas para cima em sinal de respeito.

O Axexê se constitui em um período de “obrigações”, de acordo com a estrutura do mito, que podem ser: de sete dias para os “mais velhos”, os egbomis; de três para iaôs, que não possuem as obrigações de sete anos de iniciados e de um dia para os iaôs, que não completaram as obrigações de três anos. Quanto mais tempo de iniciado tiver o morto, mais complexo será o ritual, a modo de desfazer os vínculos com a comunidade. No caso da morte do pai ou mãe-de-santo o Axexê é repetido em intervalos de um mês, um ano, sete, quatorze e vinte anos. Isto porque eles têm mais vínculos com o terreiro e estes precisam ser cortados.

Em muitas casas de candomblé, os ogãs, ekedis e outros membros da comunidade são destinados apenas o “carrego” – eru, ritual no qual são despachados os otás, as pedras dos assentamentos. No entanto, a depender do tempo de iniciação do ogã ou da ekedi e a função que ocupava no terreiro lhe são reservadas as premissas votivas de uma noite de celebração do Axexê. Todavia, nos terreiros de candomblé situados fora do eixo das casas tradicionais a maioria dos iniciados acaba não tendo nem sequer um dia de homenagem, isto porque fazer o Axexê demanda um alto custo financeiro. Os custos com as celebrações que vão desde o gasto com os animais, que são sacrificados, às oferendas, ao “dinheiro do chão” do ogãs, dos pais ou mães-de-santo de outros terreiros, que oficializaram o rito. Há ainda um grande gasto com os jantares aos visitantes e membros da comunidade. "Quanto mais tempo de iniciado tiver o morto, mais complexo será o ritual, a modo de desfazer os vínculos com a comunidade. No caso da morte do pai ou mãe-de-santo o Axexê é repetido em intervalos de um mês, um ano, sete, quatorze e vinte anos. Isto porque eles têm mais vínculos com o terreiro e estes precisam ser cortados."Além dos aspectos simbólicos que envolvem o ritual, o Axexê é, também, o espaço construído de socialização da experiência da dor pela ausência do corpo físico, que se faz presente na manipulação de um conjunto de símbolos e na retórica do ritual. O evento produz uma sequência de experiências subjetivas ao desenhar e controlar os sentimentos e as emoções.

No Axexê os indivíduos mergulham na experiência religiosa, com uma dimensão corporal da emoção, como cognições encarnadas pelos afetos recebidos e trocados pelo seu entorno, cria novos canais de comunicação com seus sentimentos e emoções, enquanto pensamentos encarnados. Muitas vezes, os sentimentos vivenciados no ritual são antagônicos ao esperado e desejado para os enlutados dentro e outra visão de mundo e de morte.

Nos ritos mortuários todos os participantes e a audiência são enredados na trama do ritual na produção de imagens multissensoriais, na manifestação somática e da emoção, no cuidado, com gestos, “na conspiração de conforto” na demonstração de confiança com a fala clama, gestos de respeito à dor dos enlutados, tentando ampará-los, e lhes dar um senso de orientação e equilíbrio.

É preciso realizar essa celebração honrosa à minha Mãe Stella para que se retire os vínculos materiais com a casa de candomblé, liberte o seu Ori e desconecte dos nossos. Lamentável que alguém por qualquer tipo de sentimento possa se opor contrário a uma tradição milenar, realizadas por todos aqueles que em África são meus antepassados e antepassados de Mãe Stella.

Olorun Kosi purê Iya mi Odé Kaiodê

Fábio Lima é antropólogo, escritor, doutor em Estudos Étnicos e Africanos e ogã de Oxum no Ilê Axé Opô Afonjá

Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores