Prisão de Cabral revela o impacto dos desvios sobre a crise do Rio

Rio de Janeiro tem dois ex-governadores presos em um intervalo de 24 horas e a confirmação de que um grupo de corruptos tem grande parcela de responsabilidade na crise do estado

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  • Da Redação

Publicado em 18 de novembro de 2016 às 07:46

- Atualizado há um ano

Há três meses, o Rio de Janeiro encantava o mundo com o sucesso dos Jogos Olímpicos, cujo resultado derrubou previsões que apontavam para um fiasco do Brasil em escala mundial. Agora, a impressão que se tem dele é de caos, com dois ex-governadores presos em um intervalo de 24 horas e a confirmação de que um grupo de corruptos tem grande parcela de responsabilidade na crise financeira que levou o estado ao colapso. Tal cenário se cristalizou ontem, quando a Polícia Federal (PF) colocou na cadeia outro nome graúdo da política fluminense. Ex-governador do Rio, Cabral é preso sob acusação de chefiar esquema (Foto: Wilton Júnior/Estadão Conteúdo)Um dia após a prisão de Anthony Garotinho (PR), acusado de comprar votos em Campos com verbas de programas sociais do município controlado por ele, a PF fechou o cerco sobre o ex-governador Sérgio Cabral (PMDB), capturado a pedido da força-tarefa da Lava Jato no Rio e em Curitiba. Alvo principal da Operação Calicute, desdobramento da investigação sobre o esquema de corrupção originado na Petrobras, Cabral é acusado de liderar uma organização criminosa responsável por desviar ao menos R$ 224 milhões dos cofres públicos.

De acordo com o Ministério Público Federal,  o dinheiro teria sido surrupiado de quatro grandes obras públicas realizadas no estado de 2007 a 2014 - reforma do Maracanã para a Copa, Arco Metropolitano, PAC das Favelas e Complexo Petroquímico do Rio (Comperj). Os desvios foram apurados em contratos com duas empreiteiras: Carioca Engenharia e Andrade Gutierrez.

Em um sinal de sintonia, o ex-governador foi alvo de dois mandados de prisão simultâneos, expedidos pelos juízes federais Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro, e Sérgio Moro, de Curitiba. Os investigadores e os juízes relacionaram o desvio de recursos à crise financeira do estado.

Impacto“É um exemplo que retrata os efeitos avassaladores da corrupção para a sociedade. Aqui no Rio está faltando o mínimo para a população”, disse o procurador da República Athayde Ribeiro Costa, que integra a força-tarefa da Lava Jato  fluminense. Em sua decisão, Moro citou a “notória situação de ruína das contas públicas do governo do Rio” e disse que seria “afronta permitir que os investigados persistissem fruindo em liberdade do produto milionário de seus crimes”.

“Por causa de gestão governamental aparentemente comprometida por corrupção e inépcia, impõe-se à população daquele estado tamanhos sacrifícios, com aumentos de tributos e corte de salários e de investimentos públicos e sociais”, acrescentou Moro. Já o juiz do Rio destacou que, com a “corrosão dos orçamentos públicos, depreciados pelo ‘custo-corrupção’, toda a sociedade vem a ser chamada a cobrir seguidos rombos orçamentários”.

Em Brasília, parlamentares fizeram a mesma associação. “O PMDB do Rio de Janeiro foi responsável por todas as crises que estamos vivendo”, comentou o deputado Glauber Braga (Psol-RJ), adversário político do grupo de Cabral. “Ele é um dos responsáveis pela crise, pela gestão irresponsável dos últimos anos”, concordou o líder da Rede na Câmara, Alessandro Molon (RJ).

Para Molon, os desdobramentos das investigações da Polícia Federal devem aumentar a crise no Rio. “Ainda virão mais informações, mais denúncias”, assinalou o líder da Rede. Antes de qualquer efeito futuro da Lava Jato, o pacote de ajuste fiscal proposto pelo governo do Rio, no início do mês, ficou ainda mais longe de ser aprovado.

ManifestaçõesNo centro do Rio, manifestantes se reuniram na sede do Legislativo. Líderes do grupo soltaram fogos de artifício e, ao microfone, comemoraram a prisão de Cabral (PMDB). Pela manhã, outro grupo também protestou em frente ao apartamento onde mora Cabral, situado no Leblon, Zona Sul da capital.

Também foram presos três homens de confiança de Cabral: o ex-secretário de Governo Wilson Carvalho, o ex-secretário de Obras Hudson Braga e Paulo Fernando Magalhães, ex-assessor. Foram cumpridas conduções coercitivas contra Adriana Ancelmo, mulher de Cabral, e outras 13 pessoas, além de 38 ordens de busca e apreensão. Foi determinado o sequestro de bens do ex-governador e de mais 11 pessoas.

Lava Jato investiga propina em ‘mesada’Enquanto o ex-governador do Rio Sergio Cabral era submetido aos trâmites para encarar as grades do presídio de Bangu 8, o Ministério Público Federal detalhava as investigações sobre o esquema do qual o peemedebista é acusado de chefiar. Segundo os procuradores do MPF, a Operação Calicute surgiu “a partir do aprofundamento das investigações dos casos da Lava Jato no Rio de Janeiro, especialmente da Operação Saqueador, e das colaborações de executivos das empreiteiras Andrade Gutierrez e Carioca Engenharia, entre outras provas colhidas”.

Com isso, afirmou o MPF, descortinou-se amplo esquema de corrupção e lavagem de dinheiro. “Tal esquema consubstanciava o pagamento de expressivos valores em vantagem indevida por parte das empreiteiras ao ex-governador Sérgio Cabral e a pessoas do seu círculo, para que fossem garantidos contratos de obras com o Governo do Estado do Rio de Janeiro”, diz a nota da Procuradoria da República.

Segundo a Lava Jato, “foram colhidas provas que evidenciam que o ex-governador Sérgio Cabral recebeu, entre os anos de 2007 e 2011 ao menos R$ 2,7 milhões da empreiteira Andrade Gutierrez, por meio de entregas de dinheiro em espécie, realizadas por executivos da empresa para emissários do então Governador, inclusive na sede da empreiteira em São Paulo”.

“A investigação apurou, por exemplo, que apenas dois investigados, entre os anos de 2009 e 2015, efetuaram pagamentos em espécie, de diversos produtos e serviços, em valores que se aproximam de R$ 1 milhão”, informa a Procuradoria. “A pretensão do então governador era receber propina mensal de cerca de R$ 300 mil da Andrade Gutierrez”, assinalou o juiz  Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio, que determinou ainda o bloqueio de R$ 10 milhões em bens e contas do ex-governador.

Família Cabral: joias, lancha e luxoJoias, relógios caros e uma lancha avaliada em R$ 5 milhões é apenas a parte do patrimônio que a Polícia Federal (PF) conseguiu apreender ontem na devassa de bens atribuídos ao ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB) e a sua mulher, Adriana Ancelmo. A lista evidencia a vida de luxo que o casal ostentava, cuja posse, suspeita a Lava Jato, foi adquirida com propina paga por empreiteiras contratadas para grandes obras públicas no estado.

Um relatório da PF aponta Cabral como dono da lancha Manhattan Rio, que ocupa a marina do Condomínio Portobello, em Mangaratiba, na Costa Verde fluminense. No local, a família Cabral tem casa de veraneio, onde costuma realizar festas e receber convidados. Um dos eventos, segundo os investigadores, custou R$ 81.160.

A lancha está em nome de Paulo Fernando Magalhães, ex-assessor de Cabral, também preso ontem. No relatório, a PF afirma também que o ex-governador é o real dono de um helicóptero em nome de Magalhães.  A investigação da força-tarefa da Lava Jato no Rio informou que a propina destinada ao peemedebista pelo cartel de empreiteiras, além de bancar o luxo do casal, foi usada para pagar despesas menores, incluindo R$ 1.070 em cachorros-quentes distribuídos durante uma festa do filho de Cabral.

O grupo de investigadores da Lava Jato no Paraná detalhou, no pedido de prisão de Cabral, pagamentos em dinheiro vivo feitos para o casal por suspeitos ligados ao peemedebista. Em especial, o Ministério Público Federal (MPF) mencionou um gasto de R$ 57.038 em seis vestidos de grife adquiridos pela mulher do ex-governador. Além de repasses em espécie, a propina era fracionada em  depósitos de até R$ 10 mil realizados para contas de Cabral. O valor era uma forma de não levantar suspeitas.

Ascensão meteórica e briga com GarotinhoFilho do jornalista e crítico de música Sérgio Cabral, linha de frente do lendário Pasquim, o ex-governador do Rio de Janeiro ascendeu de forma rápida na política nacional antes de deixar seu apartamento no Leblon rumo às dependências da Polícia Federal fluminense. Em 1987, aos 23 anos, ganhou o primeiro cargo público. Foi nomeado diretor de Operações da Companhia de Turismo do Rio de Janeiro, a TurisRio, pelo então governador Moreira Franco.

Na sucessão de 1990, Cabral Filho foi eleito deputado estadual pelo PSDB. Reeleito em 1994, presidiu a Assembleia do Rio de 1995 a 2002. Eleito senador em 2002, ganhou a disputa pelo governo do Rio em 2006, com apoio do ex-governador Anthony Garotinho, de quem se tornaria inimigo. Renovou o mandato em 2010 com votação recorde no primeiro turno, renunciou no início de 2014 para conseguir emplacar o vice, Luiz Fernando Pezão.

Dois anos antes, começaram a pipocar denúncias sobre suas relações próximas com empreiteiros. Em especial, o dono da Delta, Fernando Cavendish, preso pela Lava Jato. Coube a Garotinho divulgar as ligações do rival em seu blog, usado ontem, um dia após sua prisão, para provocar o inimigo peemedebista: “A hora de Sérgio Cabral chegou”, celebrou a página.